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Os Pré-Adamitas

Autor: Revista Espírita, março de 1860

Uma carta que recebemos contém a seguinte passagem: “O ensinamento que vos foi dado pelos Espíritos repousa, com isto devo convir, sobre uma moral inteiramente conforme à do Cristo, e mesmo muito mais desenvolvida do que não o está no Evangelho, porque mostrais a aplicação daquilo que, muito frequentemente, não se encontra senão em preceitos gerais. Quanto à questão da existência dos Espíritos e das suas relações com os homens, para mim ela não é objeto de nenhuma dúvida; dela estaria convencido pelo único testemunho dos Pais da Igreja, se não lhe tivesse a prova por minha própria experiência. Não levanto, pois, nenhuma objeção a este respeito; não ocorre o mesmo com certos pontos de sua Doutrina que, evidentemente, são contrários ao testemunho das Escrituras. Limitar-me-ei, por hoje, a uma única questão, a relativa ao primeiro homem. Dissestes que Adão não foi nem o primeiro e nem o único que povoou a Terra. Se assim fora, seria necessário admitir que a Bíblia é um erro, uma vez que o ponto de partida seria controvertido; vede um pouco a quais consequências isto nos conduz! Este pensamento, eu o confesso, lançou alguma perturbação em minhas ideias; mas como sou, antes de tudo, pela verdade, e porque a fé não pode negar estabelecendo-se sobre o erro, consenti, eu vos peço, dar-me a este respeito alguns esclarecimentos, se o vosso lazer vo-lo permitir; e se puderdes tranquilizar a minha consciência, por isto vos serei muito reconhecido.”

Resposta.

A questão do primeiro homem na pessoa de Adão, como única fonte da Humanidade, não é a única sobre a qual as crenças religiosas deveram se modificar.

O movimento da Terra, numa certa época, pareceu de tal modo oposto ao texto das Escrituras, que foi motivo de perseguições das quais essa teoria não foi o pretexto, e, todavia, vê-se que, Josué detendo o sol não pôde impedir a Terra de girar; ela gira apesar dos anátemas, e hoje ninguém poderia contestá-lo sem prejuízo de sua própria razão.

A Bíblia diz igualmente que o mundo foi criado em seis dias, e fixa -lhe a época em torno de 4 mil anos antes da era cristã. Antes disso, a Terra não existia, ela foi tirada do nada: o texto é formal; e eis que a ciência positiva, inexorável, vem provar o contrário. A formação do globo está escrita em caracteres imprescritíveis do mundo fóssil, e está provado que os seis dias da criação são igualmente de períodos cada um, talvez, de várias centenas de milhares de anos. Isto não é um sistema, uma doutrina, uma opinião isolada, é um fato tão constante quanto o movimento da Terra, e que a teologia não pode se recusar em admitir; também não mais senão nas pequenas escolas que se ensina que o mundo foi feito em seis vezes vinte e quatro horas, prova evidente do erro no qual se pode cair tomando ao pé da letra as expressões de uma linguagem, frequentemente, figurada. A autoridade da Bíblia recebeu um insulto aos olhos dos teólogos? De nenhum modo, eles se renderam à evidência, e disto concluíram que o texto podia receber uma interpretação.

A ciência, folheando os arquivos da Terra, reconheceu a ordem na qual os diferentes seres vivos apareceram na superfície; a observação não deixa nenhuma dúvida sobre as espécies orgânicas que pertencem a cada período, e essa ordem está de acordo com aquela que está indicada no Gênese, com a diferença de que esta obra, em lugar de ter saído miraculosamente das mãos de Deus em algumas horas, cumpriu-se, sempre por sua vontade, mas segundo a Lei das forças da Natureza, em alguns milhões de anos. Deus, por isso, é menos grande e menos poderoso? Sua obra é menos sublime por não ter o prestígio da instantaneidade? Evidentemente não; seria necessário fazer-se da Divindade uma ideia bem mesquinha por não reconhecer sua onipotência nas leis eternas que ela estabeleceu para reger os mundos.

A ciência, do mesmo modo que Moisés, coloca o homem em último na ordem da criação dos seres vivos; mas Moisés coloca o dilúvio universal no ano de 1654 do mundo, ao passo que a geologia nos mostra esse grande cataclismo anterior à aparição do homem, tendo em vista que, até este dia, não se encontrou nas camadas primitivas nenhum traço de sua presença, nem dos animais da mesma categoria no ponto de vista físico; mas nada prova que isto seja impossível; várias descobertas já lançaram dúvidas a esse respeito; portanto, pode ser que, de um momento para outro, adquira-se a certeza dessa anterioridade da raça humana. Resta a ver se o cataclismo geológico, cujos traços estão por toda a Terra, é o mesmo do dilúvio de Noé; ora, a lei da duração da formação das camadas fósseis não permite confundi-las, a primeira remontando talvez a cem mil anos. Do momento em que forem encontrados os traços da existência do homem antes da grande catástrofe, ficará provado, ou que Adão não foi o primeiro homem, ou que a sua criação se perde na noite dos tempos. Contra a evidência não há raciocínios possíveis; os teólogos deverão, pois, aceitar este fato como aceitaram o movimento da Terra e os seis períodos da criação.

A existência do homem antes do dilúvio geológico, é verdade, é ainda hipotética, mas eis o que o é menos. Admitindo que o homem apareceu pela primeira vez na Terra quatro mil anos antes de Cristo, se 1650 mais tarde toda a raça humana foi destruída com exceção de um único, disso resulta que o povoamento da Terra não data senão de Noé, quer dizer, de 2350 anos antes da nossa era. Ora, quando os Hebreus emigraram para o Egito, no décimo oitavo século, encontraram este país muito povoado e já muito avançado em civilização.

A história prova que, nessa época, as índias e outros países estavam igualmente florescentes. Seria necessário, pois, que do décimo quarto ao décimo oitavo século, quer dizer, no espaço de 600 anos, não somente a posteridade de um único homem pôde povoar todos os imensos continentes então conhecidos, supondo que os outros não o fossem, mas que, nesse curto intervalo, a espécie humana pôde se elevar da ignorância absoluta, do estado primitivo, ao mais alto grau do desenvolvimento intelectual, o que é contrário a todas as leis antropológicas. Tudo se explica, ao contrário, admitindo-se a anterioridade do homem, o dilúvio de Noé com a catástrofe parcial confundida com o cataclismo geológico, e Adão, que viveu há 6.000 anos, como tendo povoado um continente ainda inabitável. Ainda uma vez, nada poderia prevalecer contra a evidência dos fatos; por isso cremos prudente não se inscrever muito levianamente em falso contra doutrinas que podem, cedo ou tarde, como tantas outras, pôr em erro aqueles que as combatem. As ideias religiosas, longe de perderem, se engrandecem caminhando com a ciência; é o meio de não dar ensejo ao ceticismo em demonstrando um lado vulnerável.

Que teria acontecido à religião se ela se obstinasse contra a evidência, e se persistisse em cunhar de anátema quem não aceitasse a letra das Escrituras, disso resultaria que não poderia ser católico sem crer no movimento do sol, nos seis dias, nos 6.000 anos da existência da Terra; contai, pois, o que restaria hoje de católicos. Proscrevei também aquele que não se prende à letra, à alegoria da árvore e de seu fruto, da costela de Adão, da serpente, etc? A religião será sempre forte quando ela marchar de acordo com a ciência, porque ela reunirá a parte esclarecida da população; é o único meio de dar um desmentido ao preconceito que a faz considerar, pelas pessoas superficiais, como a antagonista do progresso. Se jamais, e isso a Deus não praza, ela repelisse as evidências dos fatos, hostilizaria os homens sérios, e provocaria o cisma, porque nada poderia prevalecer contra a evidência. Também a alta teologia, que conta com homens eminentes por seu saber, admite, sobre muitos pontos controversos, uma interpretação conforme a sã razão. Somente é deplorável que ela reserve suas interpretações para os privilegiados, e continue a fazer ensinar a letra nas escolas; resulta disso que esta letra, primeiro aceita pelas crianças é mais tarde rejeitada por elas quando chega a idade do raciocínio; nada tendo por compensação, rejeitam tudo e aumenta o número dos incrédulos absolutos. Não dai, ao contrário, à criança senão aquilo que sua razão possa admitir mais tarde, e sua razão, em se desenvolvendo, a fortalecerá nos princípios que lhe inculcaram. Assim falando, cremos servir aos verdadeiros interesses da religião; ela será sempre respeitada quando mostrada onde realmente está, e quando não fará consistir nas alegorias das quais o bom senso não pode admitir a realidade.

Fala MEU! Edição 62, ano 2008

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