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Uma solução imaginária

Autor: Márcio Polli

Nas Ciências Sociais, é relativamente frequente nos depararmos com a expressão “Mito Fundador” para explicar as representações que nos definem enquanto povo, enquanto nação, presentes no imaginário popular.

Mas o que vem a ser “Mito Fundador” e qual sua ligação com o espiritismo? Ou melhor, qual a sua ligação com o movimento espírita? – pois em minha concepção espiritismo e movimento espírita são coisas distintas.  Marilena Chauí  diz que mito fundador é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade. Exemplificando, é como quando dizemos que nos orgulhamos de ser brasileiros porque somos a mistura de 3 raças: o bravo indígena, os esforçados  africanos e os empreendedores lusitanos, aqui é uma democracia racial, onde o preconceito não faz morada, pelo menos somos menos preconceituosos do que por exemplo outras nações como os Estados Unidos, somos um povo ordeiro, pacífico, onde todos os povos do mundo, todas as crenças aqui encontram tranquilidade para viverem e professarem sua fé…, mas a realidade não é bem assim, pois todas essas afirmações são mitos criados e recriados que povoam nossas mentes desde sempre, nos levando a acreditar em todas essas afirmações, sem ao menos contestá-las. Há assim a crença generalizada de que o Brasil é um dom de Deus e da Natureza (afinal, Deus é brasileiro!!!), tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor, é um país sem preconceitos, pratica a mestiçagem como padrão fortificador da raça, é um país acolhedor para todos aqueles que nele desejam trabalhar, é um país cheio de contrastes regionais, destinado por isso à pluralidade econômica e cultural, onde só o que nos falta é a modernização, ou seja, uma economia mais avançada com tecnologia de ponta e moeda forte para sermos respeitados pelo mundo afora.  Pois bem, para Chauí a força persuasiva dessas representações transparece quando a vemos em ação, quando elas produzem contradições que passam despercebidas. É assim quando, por exemplo, alguém pode afirmar que os índios são ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são burros, as mulheres inferiores, mas, simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo sem preconceitos e uma nação mestiça. Alguém pode dizer-se indignado com a existência de crianças de rua, com as chacinas dessas crianças ou com o desperdício de terras não cultivadas e os massacres dos sem-terra, mas, ao mesmo tempo, afirmar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo pacífico, ordeiro e generoso. Em suma, essa representação permite que uma sociedade que tolera a existência de milhões de crianças sem infância e que, desde seus surgimento, pratica o apartheid social possa ter de si mesma a imagem positiva de sua unidade fraterna.

Quando o assunto esta relacionada à história do país por exemplo, esse imaginário ganha mais força ainda. Aprendemos na escola que a independência do Brasil foi pacífico, certo? Errado! Muitos perderam sua vida no processo de independência brasileiro na Bahia, por exemplo, que defendeu até aonde pode os interesses portugueses na América. Todos esses exemplos ilustram o quanto somos levados a acreditar em mitos, em algo que na realidade não existe, mas a pior consequência disso é que se não vemos nossos problemas como de fato são, não temos como resolvê-los, pois em nosso imaginário esses problemas simplesmente inexistem, daí aceitarmos situações como o apartheid social…, mas muitos ainda se questionarão: que apartheid social?, aqui é o Brasil e não a África!.

Dentro do movimento espírita, podemos dizer que existem sim seus mitos fundadores, que não nos deixam enxergar para além da Caverna de Platão. Ou não é contraditório o discurso de muitos diretores de várias casas espíritas que dizem ser os jovens o futuro do movimento, aqueles que darão continuidade aos trabalhos da casa, mas, inexplicavelmente, é o mesmo dirigente que poda qualquer iniciativa dos grupos de mocidade, que dificulta e muitas vezes até proíbe a participação destes mesmos jovens, futuros trabalhadores, nos trabalhos mediúnicos da casa com explicações sem fundamento algum. Se olharmos para o movimento espírita percebemos esse discurso enraizado e já gerando seus frutos. A cada dia que passa, cada vez mais as casas  espíritas têm dificuldade  de completar seus quadros de trabalhadores, sendo quase sempre os mesmos que assumem mil e uma funções, enquanto o jovem é quase que guardado para o “futuro”, pois ele pode ser o futuro, mas agora não está apto ao trabalho porque é indolente, irresponsável, lhe falta conhecimento doutrinário, etc…; assim como o Brasil, eterno país do futuro, mas nunca do presente.

É comum ouvirmos dizer que o espírita procura sempre aceitar outras religiões e respeitar a escala evolutiva de cada um, mas, sinceramente, quem nunca quando se deparou com algum irmão de outra religião,  disse ou pensou : “coitado, um dia ele vai perceber a verdade” ou “um dia ele chega lá”, ou pior ainda “é que o espiritismo é um pouco mais evoluído que sua religião, está um degrau a cima” , ou seja, o mesmo  movimento que prega humildade, o respeito às demais religiões, também cria discursos como esses, que sinceramente são muito mais comuns do que pensamos, mas, como na explicação do Mito Fundador, não o percebemos, não vemos a contradição. Muitos centros fazem por exemplo exposições teóricas magníficas, várias vezes sobre conhecimento doutrinário, sem contudo contextualizá-la, sem dar o suporte necessário a quem frequenta essas casas, fala-se de autoconhecimento, reforma íntima, mas são muito poucos aqueles grupos que desenvolvem uma metodologia ou atividades para que esses objetivos sejam alcançados,  são poucos aqueles que conseguem sair do discurso e realmente construir algo de concreto. A grande maioria fica presa apenas no discurso, levando seus frequentadores  a acreditar que é assim que se faz à reforma íntima ou é assim que se autoconhece, pois é assim que é; em resumo, você acaba mutilando a doutrina espírita, surge uma enorme contradição entre o discurso desses grupos e os atos, que é o que realmente conta. Que possamos ficar atentos em quanto anda o discurso de nossas casas, do movimento espírita como um todo, assim como  nosso próprio discurso, e se acaso percebermos que há algo dissonante entre discurso e prática, e para você é algo natural , cuidado, porque você pode estar sendo vítima do Mito Fundador e a saída da Caverna ficará mais distante.

Fala MEU! Edição 49, ano 2007

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