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As várias mortes em uma vida

Autora: Claudia Gelernter

Não há mal que por bem não venha 

Ditado espanhol

O que é vida, sob o ponto de vista terreno?          

Vida é tudo aquilo que acontece entre o nascer e o morrer do corpo físico: eventos físicos, sociais, psíquicos ou espirituais que ocorrem ao longo de uma existência na Terra.

Tudo o que nos acontece de bom, ruim ou neutro tem, como objetivo principal, nossa evolução.  (Recordando que muitas vezes aquilo que julgamos como mau é, em verdade, algo bom e vice-versa).  

Diz a Lei que devemos nascer, morrer, renascer ainda e progredir sempre. Portanto, não existe a possibilidade de retrocedermos na caminhada, tampouco de desistirmos no caminho. Não conseguimos nos destruir, não existe a possibilidade da inexistência. Sobreviveremos a tudo. O que temos é o direito de decidir se sofreremos mais ou menos durante este rico e maravilhoso percurso. 

E, dentro deste processo chamado vida, vamos presenciando um desfilar de mortes, em todas as fases vividas. Finalizações de etapas, de ciclos, perdas de entes queridos, mudanças de cidades, de amizades, de trabalho, alterações no corpo, na situação social, nos planos, na forma de ver o mundo, nos sonhos. Muitas mortes, muitas dores e lamentos.

A Lei da Impermanência, mostrando-nos o inevitável, porque necessário. 

Porém, quando conseguimos reconhecer que os fechamentos não são para nos destruir, mas para nos fortalecer, automaticamente o sofrimento acaba, dando lugar à aceitação e à gratidão. Deixamos de lado as reclamações, as revoltas, os muxoxos e nos focamos no que deve ser realizado por aqui.  

Eis a maturidade que devemos buscar. 

Renascer para crescer em espírito 

Quando decidimos pela reencarnação, morre temporariamente para nós a realidade suprema e absoluta: nossa vivência espiritual.

Somos Espíritos, portanto nossa dimensão natural é a do mundo dos Espíritos. É lá que podemos ser o nosso eu real, desprovido de máscaras ou necessidades materiais. Conseguimos nossa relativa liberdade, muitas vezes com magnifica ampliação de consciência, podendo focar nossa atenção em fatos e situações realmente relevantes, além de nos dedicarmos a assuntos de maior necessidade.  

Por certo não deve ser fácil decidir pela reencarnação, embora seja esta decisão inevitável, quando precisamos aprender determinadas experiências relacionais e planetárias. Mas a verdade é que o medo do fracasso pode surgir no cenário, causando grande angústia ao Ser reencarnante.

Vemos, ainda, o luto com relação àquilo que deixaremos para trás – o que chamamos de luto antecipatório.  

No livro Nosso Lar, do Espírito André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier, no capítulo 47, o médico carioca nos conta que Dona Laura, uma grande trabalhadora daquela cidade espiritual, na véspera de retornar ao Plano Físico, encontrava-se ansiosa, séria, acabrunhada. Sentia enorme receio de retornar, tendo em vista as possibilidades porvindouras. Não que ela fosse viver um plano de enormes problemas, mas sabia das dificuldades que enfrentamos na Terra, do quanto precisamos batalhar para alcançarmos a paz necessária para atravessar as dificuldades que a vida se nos apresenta.  

Foi quando Ministro Genésio, um dos convidados para a festa de despedida dela, em tom firme, falou ao seu coração preocupado:

“… precisamos confiar na Proteção Divina e em nós mesmos. O manancial da Providência é inesgotável. É preciso quebrar os óculos escuros que nos apresentam a paisagem física como exílio amargurado. Não pense em possibilidades de fracasso; mentalize, sim, as probabilidades de êxito”.   

Podemos destacar aqui sobre a necessidade de mentalizar, de focar o positivo da experiência. Do quanto precisamos confiar na dinâmica da Vida, na proteção e direcionamento positivo que ela proporciona, sempre. Quando nossas crenças mais profundas ditam o fracasso, impossível o sucesso. É preciso desenvolver uma visão real, consistente e coerente com a realidade da Vida, que traz o bem sempre, mesmo que sob o disfarce de algo mau.  

Após longo diálogo, Dona Laura encheu-se de coragem e força e tornou a se alegrar diante das oportunidades que surgiriam em sua empreitada na Terra.

O luto foi elaborado. Aceitou a necessidade de sua reencarnação com tranquilidade e boa energia. 

Ser criança para absorver 

Assim como ela, quando renascemos precisamos, inevitavelmente, obedecer a Leis Naturais, relativas ao desenvolvimento físico e psicológico, oriundo do mundo material. O corpo infantil vai crescendo e, com ele, os processos mentais vão ficando cada vez mais complexos, muita vez carregados de imputs nem sempre positivos.   

A perda relativa da memória espiritual nos permite estar mais livres para as novas aprendizagens. Interferimos menos, questionamos menos, aprendemos mais. Por outro lado, este momento é de extrema delicadeza e vulnerabilidade. Se os adultos não se atentam para a psicologia infantil, se não observam as necessidades de aprendizagem positiva de uma criança, para além das questões intelectuais, acabam por contaminar o Espírito reencarnante com estímulos deletérios, capazes de comprometer toda a caminhada do Ser.  

Com frequência pergunto às pessoas se elas acreditam ser mais importante ter um filho ou dirigir um carro. Pergunta esta que certa vez fizeram para mim e que me encheu de estranheza. Então me dizem: “Claro que é mais importante ter e educar um filho!”. Diante da óbvia resposta, torno a fazer nova pergunta: “Então, por que será que para guiar um carro nos preparamos tanto, com leituras, aulas e testes, enquanto que, para ter um filho, a maior parte das pessoas somente realiza sexo?”

Leituras sobre a psicologia infantil, sobre formas de educar, sobre as variadas pedagogias disponíveis são de suma importância! Encontros, trocas e pesquisas, também! 

Eu, como Psicóloga, ficaria imensamente feliz se um jovem casal me procurasse para discutir questões relacionadas a estes temas, antes do nascimento do primeiro filho. Esta seria uma medida inteligente. Mais que isso – uma ação verdadeiramente amorosa, comprometida, responsável.  

E, ainda dentro da temática “morte”, Ser criança é também ver morrer na alma, aos poucos, a leveza interior. Com o passar dos anos, os pequenos vão tendo contato com dificuldades e desafios e aprendendo que os adultos nem sempre são confiáveis e corretos. Aprende com a mentira; existe mesmo no meio infantil que para ser amado é preciso bem mais que apenas ser um filho, mas que é preciso corresponder a muitas expectativas, nem sempre possíveis para ela.  

Adolescência: a perda da infância e o medo do mundo adulto 

Os anos vão passando e, se ainda encarnados, vamos vivenciando mudanças significativas. Das naturais, relativas ao físico, a perda do corpo infantil gera angústias no adolescente. O tamanho, as formas, tudo gera estranheza. Muitas vezes ele nem consegue se dar conta do espaço que ocupa no ambiente, resvalando nos móveis e cantos, machucando-se.  

Outra perda significativa diz respeito à sua ligação com os pais. Aqueles que pareciam ser os super-heróis perfeitos e verdadeiros passam a ser questionados. Discussões podem ocorrer; o jovem busca sua própria identidade, que deve ser diferente da dos pais. Existe grande conflito interno, com questionamentos variados, que vão desde questões de cotidiano até filosóficos. O adolescente vive um luto dos pais idealizados que devem ser substituídos por figuras mais reais, falíveis. E isso gera angústias. 

Outro luto vivido pelo adolescente é o relacionado à própria identidade. Ele não sabe quem é ao certo. Memórias de tendências desenvolvidas em outras vidas, até então retidas no banco do inconsciente, passam a tomar espaço no psiquismo, o que por vezes causa conflitos naqueles com quem convive, assim como nele próprio.  

Junto a tudo isso, dependendo de suas vivências, do clima de seu lar, das frases que escuta e dos atos que percebe à sua volta, este adolescente pode sentir grande receio de adentrar no mundo adulto, por lhe parecer opressor, injusto e caótico demais.

Filhos que veem seus pais brigando com frequência ou com conflitos no campo profissional tendem a apresentar dificuldades nos relacionamentos e nas escolhas necessárias. Além disso, podem tentar “segurar” a vida, infantilizando ou evitando responsabilidades por longos períodos.  

Vale dizer que, em todos os casos, o diálogo franco, a escuta amorosa e a orientação segura devem permear as relações entre pais e filhos, para que estas crises, comuns nesta fase, sejam superadas com certa tranquilidade. 

O mundo adulto, suas crises e superações 

Viktor Frankl, famoso psiquiatra vienense, criador da Logoterapia, e sobrevivente de um campo de concentração, dizia que “quando a circunstância é boa, devemos desfrutá-la; quando não é favorável, devemos transformá-la, e, quando não pode ser transformada, devemos transformar a nós mesmos”.  

Complemento a ideia dizendo que, se isso não ocorrer, podemos adoecer.

Todo aquele que se nega a aceitar o que não pode ser modificado, enrijece diante da vida, estaciona no caos, se enclausura na negação, deixando de observar múltiplas bênçãos que bailam bem ao lado, convidando-o para a fartura da existência. São os mimados da Terra, que pensam ter reencarnado apenas para usufruir, se divertir e descansar. Ledo engano! 

A Vida nos mostra (quando nos dispomos a observá-la) que em todo lugar existe trabalho, esforço e cooperação. 

Desde os menores seres até os mais desenvolvidos, todos precisamos uns dos outros, num rico entrelaçar de existências, formando uma rede sagrada a que também podemos chamar de Deus, já que é Ele o Criador de tudo o que existe.

Jesus, quando questionado sobre o porquê de trabalhar aos sábados, desrespeitando a Lei Judaica que prega o descanso no shabat (dia de sábado), responde de forma clara e objetiva: “Meu Pai trabalha até hoje e eu também!”.  

E podemos chamar de trabalho tudo aquilo que realizamos dentro e fora de nós com o firme propósito de nos melhorarmos, assim como ao mundo.  

Justamente por este motivo que chamamos de “trabalho de luto” o processo de elaboração no qual o enlutado precisa cumprir determinadas metas, esforçando-se para aceitar a morte, a finalização de algo, trabalhando a dor advinda da perda de forma madura, ajustando-se ao ambiente, transferindo o amor dedicado até então para outras experiências, pessoas ou causas. É assim que vemos pessoas que perderam seus parentes mais significativos conseguindo superar a dor mais intensa dedicando seu tempo e doando amor a outras pessoas ou abraçando nobres causas sociais ou mesmo ambientais. Porque o amor é a fonte primeva de nossa saúde, paz e felicidade. Afinal, somos filhos do amor. Ele é nossa matéria-prima, podemos assim dizer. 

Por todo lado podemos perceber que situações, coisas e seres começam, se mantêm e depois acabam, dando lugar a novas experiências e formas de vida.

E assim também se dá conosco, claro! 

Na fase adulta já é esperado que consigamos trabalhar o desapego com mais maturidade. Aliás, tendo em vista que tudo é impermanente, deveríamos nos educar para a morte, para os fechamentos desde pequenos, sendo orientados pelos adultos a respeito. Isso facilitaria muito, nos protegendo de problemas emocionais e físicos nas fases posteriores.  

Infelizmente, por enquanto, em nossa sociedade existe uma ditadura da felicidade que nega a realidade do fim.

E quando ele teima em aparecer, nos desesperamos, sem aceitar o inevitável. 

Velhice, a perda da identidade profissional e a própria morte a ser trabalhada  

E, seguindo pelas trilhas da existência, quando atingimos a última fase desta encarnação, se bem aproveitamos as experiências vividas, já estamos aptos a trabalhar algumas outras perdas, ainda necessárias.

Uma delas diz respeito à nossa identidade profissional. Deixamos de ser engenheiros, professores e comerciantes para recebermos o título de aposentados. E, em nossa sociedade, isso tem um peso elevado, capaz de fazer sofrer diversas pessoas que construíram a própria existência principalmente sob as bases da profissão escolhida.  

Além disso, os idosos passam a ser vistos como um fardo a ser carregado, um peso para os familiares desatentos e egoístas, que se esquecem rapidamente de todos os benefícios recebidos.

De forma mais ampla, no nível social, deixam de ter voz, passam desapercebidos, apesar das múltiplas contribuições que possam ter realizado, ao longo dos anos. 

E, já tendo passado por inúmeras perdas significativas, eis que será preciso trabalhar a própria desencarnação, o seu desapego total com as coisas deste mundo.  

Aqueles que conseguem encontrar o sentido de suas existências, utilizando os talentos concedidos de forma útil, responsável e amorosa, conseguem trabalhar este desafio de forma mais tranquila. 

São aqueles que se despedem serenamente deste mundo, contentes pelo que aqui realizaram, certos de que cumpriram suas missões de alguma maneira, deixando boas marcas por onde caminharam. 

As várias mortes em uma vida são necessárias. Sem elas, não há crescimento, não existem novas aprendizagens. São estas mortes que nos impulsionam ao novo, com suas ricas oportunidades. 

Sábios aqueles que compreendem, aceitam, confiam e são gratos às finalizações. São os herdeiros da paz. Pois que vivem a vida, mesmo diante da morte, em harmonia íntima, com o mundo e com Deus. 

Por fim, devemos lutar pela morte suprema, a mais relevante de todas: a do homem velho que ainda habita em nós, com seus vícios e complicações, dando lugar ao novo homem, virtuoso, consciente, plenamente feliz. 

O consolador – Ano 10 – N 463

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