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Correspondências de Kardec foram incineradas

Autor: Paulo Henrique de Figueiredo

Título original: Denúncia: arquivos e correspondências de Allan Kardec foram incinerados, prejudicando o resgate histórico do Espiritismo

Um lamentável episódio ocorreu após o falecimento da esposa de Allan Kardec, a senhora Amélie Boudet, em 1883. Um atentado irreparável à história, não só do Espiritismo, mas da humanidade. Na execução do espólio, que incluía móveis, imóveis, livros, e tudo que pertencia não só ao casal Rivail, mas também à antiga Sociedade parisiense de estudos espíritas, – onde durante mais de uma década, os espíritos superiores se comunicaram, dialogando com os pesquisadores na elaboração da Doutrina Espírita –, pois, então, durante essa execução testamentária, numa atitude equivocada e impensada, todo o legado documental dessa pesquisa cuidadosamente arquivada por Kardec para servir às gerações futuras foi queimada numa pilha de papéis! Perdemos, nessa ignóbil pira, o acesso aos questionamentos, comunicações espirituais, trocas de cartas; fontes primárias inestimáveis para reconstruir os passos dos iniciadores da doutrina, seus debates, dúvidas e exemplos.

Vamos aos fatos dessa denúncia.

Nada disso teria chegado ao nosso conhecimento, se não fosse a nobre e corajosa iniciativa da médium e grande amiga do casal Rivail, senhora Berthe Fropo. Quando o professor Rivail morreu em 31 de março de 1869 por um ataque cardíaco fulminante, enquanto preparava a mudança de sede da Sociedade, Berthe tornou-se a amiga predileta e conselheira de sua esposa. Foi presença incansável no dia a dia de Amélie, participando tanto das questões diárias da vida como também da defesa do legado do Espiritismo. Por meio de comunicações, Allan Kardec, em espírito, as orientava, dando conselhos e alertas.

Berthe nasceu Berthe Victoire Alexandrine Thierry de Maugras, no dia 3 de outubro de 1821, curiosamente a mesma data de aniversário de Allan Kardec, em Sarreguemines, cidade francesa da região de Alsácia-Lorena. Perto da fronteira com a Alemanha. Viúva desde 1885 do conceituado médico Joseph Fropo.

No decorrer dos anos, após a morte de Kardec, Berthe ficou indignada com o tratamento que Amélie vinha recebendo daqueles que foram nomeados para dar continuidade à divulgação das obras de Kardec. A esposa de Kardec chegou a ficar doente quando seus apelos e conselhos para uma divulgação adequada do Espiritismo não foram ouvidos. Leymarie e mais alguns, de posse de procurações dos demais sócios da sociedade, adulteraram os propósitos originais da Revista Espírita e das atividades da Sociedade, publicando artigos sobre esoterismo, doutrinas diversas como a teosofia de Helena Blavatsky, entre outros desvios e mistificações. Diante de tão graves deturpações, Berthe percebeu que não poderia ficar calada, pois isso impediria que as gerações futuras conhecessem a verdade. Desse modo, tomou a iniciativa de registrar em livro tudo o que estava ocorrendo. Nessa época, ela era vice-presidente da União Espírita Francesa, grupo criado por Amélie, Berthe, Gabriel Delanne, Léon Denis, e outras lideranças fiéis a Kardec (que por meio de mensagens havia orientado a criação desse grupo), com o objetivo de recolocar nos moldes originais a divulgação do Espiritismo. O título escolhido para o livro foi Beacoup de Lumiére, que poderíamos traduzir por “Muita luz” ou “Quanta luz”. Impresso pela “Imprimerie Polyglotte” em 1884, é um importante documento histórico que pode ser encontrado digitalizado na Biblioteca nacional da França.

Segundo nos informa Berthe, era desejo conhecido de Amélie que o senhor Hubert Joly, amigo de Kardec. sócio da Sociedade e gerente da Revista Espírita, fosse o encarregado do inventário. Porém, algo muito estranho aconteceu. Apesar de a Sociedade ser uma entidade coletiva, nenhum sócio ou mesmo o senhor Joly estavam presente nesse ato. Foram considerados como herdeiros o senhor Leymarie e sua família! E, para tanto, foram ajudados pelo senhor Vautier, tesoureiro da Sociedade e administrador. Porém, denuncia Berthe, não foi realizado inventário, nem a venda pública dos bens, a não ser alguns móveis e utensílios vendidos aos antiquários de Paris. Ou seja, as históricas mesas, cadeiras, quadros, e demais objetos que presenciaram o surgimento do Espiritismo se espalharam pelos lares dos compradores de antiguidades.

Mas o pior estava por vir. O senhor Vautier, numa conduta que seria aceitável caso se tratasse de um inventário comum, quando papéis velhos se acumulam e viram entulho, não se deu conta da gravidade de seu ato, e afirma Berthe, “me fez tremer de indignação assistir a um verdadeiro auto de fé”, quando “queimou no jardim lotes de papéis e de cartas” dos arquivos da Sociedade e de Allan Kardec. E comenta:

“Que comunicações interessantes, que notas deixadas pelo mestre foram destruídas!”

“Essa espontânea concentração de forças dispersas deu lugar a uma amplíssima correspondência, monumento único no mundo, quadro vivo da verdadeira história do espiritismo moderno, onde se refletem ao mesmo tempo os trabalhos parciais, os sentimentos múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações, os desfalecimentos; arquivos preciosos para a posteridade, que poderá julgar os homens e as coisas através de documentos autênticos. Em presença desses testemunhos inexpugnáveis, a que se reduzirão, com o tempo, todas as falsas alegações da inveja e do ciúme?” (A Gênese, página 39).

Todos esses preciosos documentos, que contavam uma história não registrada nos livros e revistas já publicados por Kardec, ficaram perdidos. Perdemos a possibilidade de conhecer essas dedicações e desfalecimentos, os artigos de ensaio, as mensagens acessórias, e tudo o mais que permitiria estudar e elaborar entendimentos novos sobre a história do Espiritismo. Alguns poucos papéis haviam sido escolhidos por Leymarie em 1870, dando origem à publicação do livro Obras Póstumas. Algumas poucas cartas se preservaram pelo resgate do escritor paulista de Taubaté, Silvino Canuto Abreu. Todo o arquivo restante, enfim, restou destruído em 1883.

No entanto, não se há de esmorecer. Existem muitos documentos disponíveis para enriquecer na pesquisa da história e filosofia da ciência espírita. Jornais e revistas publicados pelo movimento espírita da época, notícias dos jornais franceses, documentos em cartórios, obras mantidas nas bibliotecas, são fontes que podem enriquecer e recuperar fatos para completar a compreensão dessa Doutrina tão importante não só para os espíritas, mas, afirmará o futuro, para toda a humanidade.

Livros do autor: https://mundomaior.com.br/paulo-henrique-de-figueiredo/

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