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Do sobrenatural – Pelo Sr. Guizot

Primeiro artigo

Revista Espírita, dezembro de 1861

Da nova obra do Sr. Guizot, L’Église et la societé chrétienne em 1861, extraímos o notável capítulo a respeito do Sobrenatural. Não é, como poderiam pensar, um discurso pró ou contra o Espiritismo, porque não aborda a nova doutrina, mas, como aos olhos de muitos o Espiritismo é inseparável do sobrenatural, que segundo uns é uma superstição e segundo outros uma verdade, é interessante conhecer a opinião de um homem do valor do Sr. Guizot sobre a matéria. Há nesse trabalho observações de incontestável justeza, mas, em nossa opinião, também há grandes erros devidos ao ponto de vista em que se coloca o autor. Faremos o seu exame aprofundado em nosso próximo número.

“Todos os ataques de que hoje é objeto o Cristianismo, por mais diversos que sejam na sua natureza e na sua medida, partem de um mesmo ponto e tendem ao mesmo fim, a negação do sobrenatural nos destinos do homem e do mundo e a abolição do elemento sobrenatural na religião cristã, como em todas as religiões, na sua história como nos seus dogmas.

“Materialistas, panteístas, racionalistas, céticos, críticos, eruditos, uns abertamente, outros discretamente, todos pensam e falam sob o império da ideia de que o mundo e o homem, a natureza moral como a natureza física, são apenas governados por leis gerais, permanentes e necessárias, cujo curso nenhuma vontade especial jamais veio ou virá suspender ou modificar.

“Não penso aqui discutir plenamente esta questão, que é fundamental de toda religião. Quero apenas submeter aos adversários declarados ou ocultos do sobrenatural, duas observações, ou mais exatamente dois fatos que, em minha opinião, a decidem.

“É sobre uma fé natural ou sobrenatural, sobre um instinto inato do sobrenatural, que toda religião se funda. Não digo toda ideia religiosa, mas toda religião positiva, prática, poderosa, durável, popular. Em todos os lugares, sob todos os climas, em todas as épocas da História, em todos os graus da civilização, o homem traz em si esse sentimento, que eu gostaria mais de chamar pressentimento, de que o mundo que vê, a ordem em cujo seio vive, os fatos que se sucedem regular e constantemente ao seu redor não são tudo. Neste vasto conjunto, em vão ele faz diariamente descobertas e conquistas; em vão observa e constata sabiamente as leis permanentes que tudo presidem. Seu pensamento não se encerra neste universo entregue à sua ciência. Este espetáculo não basta à sua alma. Ela se lança alhures. Ela busca. Ela entrevê outra coisa. Ela aspira para o Universo e para si mesma por outros destinos e por outro senhor:

“Para além de todos estes céus o Deus dos Céus reside”,disse Voltaire, e o Deus que está além de todos os céus não é a natureza personificada, é o sobrenatural em pessoa. É a ele que se dirigem as religiões; é com a finalidade de pôr o homem em relação com ele que elas se fundam. Sem a fé instintiva dos homens no sobrenatural, sem seu impulso espontâneo e invencível para o sobrenatural, não haveria religião.

“Entre todos os seres aqui, o único que ora é o homem. Entre seus instintos morais, nenhum é mais natural, mais universal, mais invencível que a prece. A criança nela se comporta com uma docilidade solícita. O velho a ela se dobra como num refúgio contra a decadência e o isolamento. A prece sobe por si aos jovens lábios que apenas balbuciam o nome de Deus e aos lábios dos agonizantes que nem mais têm forças para pronunciá-lo. Em todos os povos, célebres ou obscuros, civilizados ou bárbaros, encontram-se a cada passo atos e fórmulas de invocação. Por toda parte onde vivem os homens, em certas circunstâncias, em certas horas, sob o império de determinadas impressões da alma, os olhos se elevam, as mãos se juntam, os joelhos se dobram para implorar ou render graças, para adorar ou apaziguar. Com transporte ou tremor, publicamente ou no íntimo do coração, é à prece que o homem se dirige, em último recurso, para encher o vazio de sua alma ou carregar os fardos de seu destino. É na prece que procura, quando tudo lhe falha, apoio para a sua fraqueza, consolo para as suas dores, esperança para a sua virtude. “Ninguém desconhece o valor moral e interior da prece, independentemente de sua eficácia quanto ao seu objetivo. Pelo simples fato de pedir, a alma se alivia, se ergue, se acalma, se fortalece. Voltando-se para Deus, experimenta esse sentimento de volta à saúde e ao repouso que se espalha no corpo, quando passa de uma aparência tempestuosa e pesada a uma atmosfera serena e pura. Deus vem em auxílio aos que o imploram, antes e sem que saibam se os ouvirá.

“Ouvi-los-á? Qual é a eficácia exterior e definitiva da prece? Eis o mistério, o impenetrável mistério dos desígnios e da ação de Deus sobre cada um de nós. O que sabemos é que, quer se trate de nossa vida exterior, quer da interior, não somos só nós que dela dispomos, conforme nosso pensamento e vontade própria. Todos os nomes que dermos a esta parte do nosso destino, que não vem de nós mesmos: acaso, fortuna, estrela, natureza, fatalidade, são outros tantos véus lançados sobre nossa impiedade ignorante. Quando assim falamos, recusamos ver Deus onde ele está. Além da estreita esfera onde estão encerradas a força e a ação do homem, está Deus, que reina e atua. Há no ato natural e universal da prece, uma fé natural e universal nessa ação permanente, e sempre livre, de Deus sobre o homem e seu destino. “Somos trabalhadores com Deus”, diz São Paulo. Trabalhadores com Deus e na obra dos destinos gerais da Humanidade e na de nosso próprio destino, presente e futuro. Aí está o que nos faz entrever a prece como o laço que une o homem a Deus. Mas aí a luz se detém para nós. “Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos.” Nós aí marchamos sem conhecê-los. Crer sem ver e orar sem prever é a condição que Deus impôs ao homem neste mundo, para tudo quanto ultrapassa seus limites. É na consciência e na aceitação desta ordem sobrenatural que consistem a fé e a vida religiosas.

“Assim, tem razão o Sr. Edmond Scherer, quando duvida que “o racionalismo cristão seja e jamais possa ser uma religião.” E por que o Sr. Jules Simon, que se inclina ante Deus com um respeito tão sincero, intitulou seu livro: La religion naturelle? Deveria tê-lo chamado Philosophie religieuse. A filosofia persegue e atinge algumas das grandes ideias sobre as quais se funda a religião. Mas, pela natureza de seus processos e pelos limites de seu domínio, jamais fundou, nem poderia fundar uma religião. Falando mais precisamente, não há religião natural, pois desde que abolido o sobrenatural, também desaparece a religião.

“Que essa fé instintiva no sobrenatural, fonte da religião, possa ser, e seja também a fonte de uma infinidade de erros e de superstições, e por sua vez fonte de uma infinidade de males, quem pensa em negar? Aqui, como em tudo, é a condição do homem que o bem e o mal se misturem incessantemente nos seus destinos e nas suas obras como nele mesmo, mas, dessa incurável mistura não se segue que nossos grandes instintos não tenham sentido e não façam senão nos tresmalhar, quando nos elevam. Aspirando a isto, sejam quais possam ser os nossos desvios, continua certo que o sobrenatural está na fé natural do homem e que é a condição sine qua non, o verdadeiro objeto, a própria essência da religião.

“Eis um segundo fato que, penso, merece toda a atenção dos adversários do sobrenatural.

“É reconhecido e constatado pela Ciência que nosso globo nem sempre esteve no estado em que hoje se acha; que em épocas diversas e indeterminadas sofreu revoluções, transformações que lhe alteraram a face, o regime físico, a população; que o homem, em particular, nem sempre existiu e que, em vários dos estados sucessivos pelos quais este mundo passou, o homem não poderia ter existido.

“Como apareceu? De que maneira e por que poder começou o gênero humano na Terra?

“Para sua origem pode haver apenas duas explicações: ou foi um produto do trabalho próprio e íntimo das forças naturais da matéria, ou foi obra de um poder sobrenatural, exterior e superior à matéria. Para o aparecimento do homem cá embaixo, uma destas duas causas se faz necessária: a geração espontânea ou a criação.

“Masadmitindo, o que de minha parte absolutamente não admito, as gerações espontâneas, esse modo de produção não poderia, nem jamais teria podido produzir senão seres crianças, à primeira hora e no primeiro estado da vida nascente. Creio que ninguém jamais disse, e que ninguém jamais dirá que pela virtude de uma geração espontânea, o homem, isto é, o homem e a mulher, o par humano, tivessem podido sair, e tivessem saído, um dia, do seio da matéria já formados e grandes, em plena posse de sua estatura, de sua força, de todas as suas faculdades, como o paganismo grego fez sair Minerva do cérebro de Júpiter.

“É somente sob esta condição que, aparecendo pela primeira vez na Terra, nela teria podido viver, perpetuar-se e fundar o gênero humano. Imagine-se o primeiro homem nascendo no estado de primeira infância, vivo mas inerte, ininteligente, impotente, incapaz de bastar-se a si mesmo um só momento, tiritando e gemendo, sem mãe para escutá-lo e nutri-lo! Aí está, entretanto, o primeiro homem que o sistema da geração espontânea poderia gerar.

“Evidentemente, a outra origem do gênero humano é a única admissível, a única possível. Só o fato sobrenatural da criação explica a primeira aparição do homem aqui na Terra.

“Os que negassem e abolissem o sobrenatural, aboliriam, no mesmo golpe, toda religião real. E é em vão que triunfam do sobrenatural, tantas vezes erradamente introduzido em nosso mundo e em nossa história. Eles são constrangidos a deter-se diante do berço sobrenatural da Humanidade, impotentes para dele fazerem sair o homem sem a mão de Deus”.

GUIZOT

Segundo artigo

Revista Espírita, janeiro de 1862

Em nosso último número publicamos o eloquente e notável capítulo do Sr. Guizot a propósito do sobrenatural, a respeito do qual nos propúnhamos fazer algumas observações críticas, que em nada diminuem a nossa admiração pelo ilustre escritor.

O Sr. Guizot acredita no sobrenatural. Sobre esse, como sobre muitos outros pontos de vista, importa nos entendamos quanto às palavras. Em sua acepção própria, sobrenatural significa o que está acima da Natureza, fora das leis da Natureza. O sobrenatural, propriamente dito, não está submetido a leis; é uma exceção, uma derrogação das leis que regem a Criação. Numa palavra, é sinônimo de milagre.

No sentido próprio, esses dois vocábulos passaram à linguagem figurada, servindo para designar tudo quanto seja extraordinário, surpreendente, insólito. De uma coisa que causa admiração, diz-se que é miraculosa, como se diz de uma grande extensão, que é incomensurável; de um grande número, que é incalculável ou de uma longa duração, que é eterna, muito embora, a rigor, possam ser medidas, calculadas e previsto um termo à última. Pela mesma razão qualifica-se de sobrenatural aquilo que à primeira vista parece sair dos limites do possível. O vulgo é sempre levado a tomar o vocábulo ao pé da letra naquilo que não compreende. Se por tal se entende tudo quanto se afaste das causas conhecidas, está bem; mas então o vocábulo não tem mais sentido preciso, porque aquilo que era sobrenatural ontem já não o é hoje. Quantas coisas, outrora como tal consideradas, não fez a Ciência entrarem no domínio das leis naturais!

Apesar dos progressos que temos feito, podemos vangloriar-nos de conhecer todos os segredos de Deus? Já nos disse a Natureza a última palavra sobre todas as coisas? Não temos desmentidos diários a essa orgulhosa pretensão? Se, pois, aquilo que ontem era sobrenatural hoje não o é, podemos logicamente inferir que o sobrenatural de hoje deixará de sê-lo amanhã. Para nós, tomamos o vocábulo sobrenatural no seu mais absoluto sentido próprio, isto é, para designar todo fenômeno contrário às leis da Natureza. O caráter do fato natural ou miraculoso é de ser excepcional. Desde que se repete, é porque está submetido a uma lei, conhecida ou não, e entra na ordem geral.

Se restringirmos a Natureza ao mundo material visível, é evidente que as coisas do mundo invisível serão sobrenaturais. Mas estando, também, o mundo invisível submetido a leis, parece-nos mais lógico definir a Natureza como o conjunto das obras da Criação, regidas pelas leis imutáveis da Divindade. Se, como o demonstra o Espiritismo, o mundo invisível é uma de suas forças, um dos poderes reagentes sobre a matéria, ele representa um papel importante em a Natureza. Por essa razão os fenômenos espíritas para nós nem são sobrenaturais, nem maravilhosos ou miraculosos. Daí se nota que longe de ampliar o círculo do maravilhoso, o Espiritismo tende a restringi-lo e fazê-lo desaparecer.

Dissemos que o Sr. Guizot acredita no sobrenatural, mas no sentido miraculoso, o que de modo algum implica na crença nos Espíritos e suas manifestações. Ora, desde que, para nós, os fenômenos espíritas nada têm de anormal, não se segue que, em determinados casos, Deus não venha derrogar as suas leis, de vez que é Todo Poderoso. Tê-lo-ia feito? Não é aqui o lugar de examinar o problema. Para tanto, fora necessário discutir, não o princípio, mas cada fato isoladamente. Ora, colocando-nos no ponto de vista do Sr. Guizot, isto é, da realidade dos fatos miraculosos, vamos tentar combater a consequência que daí ele tira, isto é, que a religião não é possível sem sobrenatural e, ao contrário, provar que de seu sistema decorre o aniquilamento da religião.

O Sr. Guizot parte do princípio de que todas as religiões se fundam no sobrenatural. Isso é certo se entendermos como tal aquilo que se não compreende. Se, porém, remontarmos ao estado dos conhecimentos humanos na época da fundação de cada religião conhecida, veremos quão limitado era o saber humano em Astronomia, em Física, em Química, em Geologia, em Fisiologia, etc.

Se, nos tempos modernos, um bom número de fenômenos já perfeitamente conhecidos e explicados passam por maravilhosos, com mais forte razão assim deveria ser em tempos remotos. Acrescentemos que a linguagem figurada, simbólica e alegórica, em uso entre todos os povos do Oriente, naturalmente se prestava às ficções, cujo verdadeiro sentido a ignorância não era capaz de descobrir.

Acrescentemos, ainda, que os fundadores das religiões, homens superiores à craveira comum, conhecendo muito mais, tiveram que impressionar as massas, cercando-se de um prestígio sobre-humano, enquanto certos ambiciosos puderam explorar a credulidade. Vede Numa, Maomé e tantos outros! Direis que são impostores. Seja.

Tomemos as religiões saídas da lei mosaica. Todas adotam a criação segundo o Gênesis. Ora, haverá realmente algo de mais sobrenatural do que essa formação da Terra, tirada do nada, surgida do caos, povoada por todos os seres vivos, homens, animais e plantas, todos formados e adultos, e isto em seis vezes vinte e quatro horas, como se por um golpe de varinha mágica? Não é a derrogação formal das leis que regem a matéria e a progressão dos seres? Certamente que Deus podia fazê-lo. Mas ele o fez? Ainda há bem poucos anos isto era afirmado como artigo de fé, e eis que a Ciência repõe o fato magno da origem do mundo na ordem dos fatos naturais, provando que tudo se realizou segundo as leis eternas. A religião sofreu por não ter mais como base um fato maravilhoso por excelência? Incontestavelmente muito teria sofrido no seu crédito se se tivesse obstinado em negar a evidência, ao passo que ganhou entrando na ordem comum.

Um fato muito menos importante, apesar das perseguições a que deu origem, é o de Josué parando o Sol para prolongar o dia em duas horas. Não importa se foi o Sol ou a Terra que parou. O fato não deixa de ser sobrenatural. É uma derrogação de uma lei capital, a da força que arrasta os mundos.

Pensaram em sair da dificuldade reconhecendo que é a Terra que gira, mas não haviam levado em conta a maçã de Newton, a mecânica celeste de Laplace e a lei da gravitação. Se o movimento da Terra for suspenso, não por duas horas, mas por alguns minutos, cessará a força centrífuga e a Terra precipitar-se-á sobre o Sol. O equilíbrio das águas na sua superfície é mantido pela continuidade do movimento. Cessando este, tudo se esboroa. Ora, a história do mundo não menciona o menor cataclismo nessa época. Não contestamos que Deus tenha podido favorecer a Josué, prolongando a claridade do dia. Por que meio? Ignoramo-lo. Poderia ter sido uma aurora boreal, um meteoro ou qualquer outro fenômeno que não tivesse alterado a ordem das coisas. Mas, inquestionavelmente, não foi aquele que, durante séculos, foi tomado como artigo de fé. É muito natural que outrora acreditassem, mas hoje isso é impossível, a menos que se renegue a Ciência.

Dirão que a religião se apoia sobre muitos outros fatos que nem são explicados, nem explicáveis. Não explicados, sim; inexplicáveis, é outra questão. Sabemos que descobertas e que conhecimentos estão reservados ao futuro? Já não vemos, sob o império do magnetismo, do sonambulismo, do Espiritismo, reproduzirem-se os êxtases, as visões, as aparições, a visão à distância, as curas instantâneas, os transportes, as comunicações orais e outras com os seres do mundo invisível, fenômenos conhecidos desde tempos imemoriais, outrora considerados maravilhosos e hoje demonstrados como pertinentes à ordem das coisas naturais, conforme a lei constitutiva dos seres?

Os livros sagrados estão cheios de fatos qualificados de sobrenaturais. Como, porém, os encontramos análogos e até mais maravilhosos em todas as religiões pagãs da antiguidade, se a verdade de uma religião dependesse do número e da natureza de tais fatos, não saberíamos qual delas seria a verdadeira.

Como prova do sobrenatural, cita o Sr. Guizot a formação do primeiro homem, que foi criado adulto porque, diz ele, sozinho e na infância não teria podido alimentar-se, mas se Deus fez uma exceção criando-o adulto, não teria podido fazer outra, dando ao menino os meios de viver, e isto sem se afastar da ordem estabelecida? Sendo os animais anteriores ao homem, não era possível, em relação ao primeiro menino, realizar a fábula de Rômulo e Remo?

Dizemos o primeiro menino quando deveríamos dizer os primeiros meninos, pois a questão de um tronco único para a espécie humana é controvertida. Com efeito, as leis da antropologia demonstram a impossibilidade material que a posteridade de um só homem tivesse podido, em alguns séculos, povoar toda a Terra e se transformar em raças negras, amarelas e vermelhas, pois está bem demonstrado que essas diferenças são devidas à constituição orgânica, e não ao clima.

O Sr. Guizot sustenta uma tese perigosa ao afirmar que nenhuma religião é possível sem o sobrenatural. Se ele assenta as verdades do Cristianismo sobre a base única do maravilhoso, dá-lhe um apoio frágil, cujas pedras se desagregam a cada dia. Damos-lhe uma base mais sólida: as leis imutáveis de Deus. Esta base desafia o tempo e a Ciência, porque os tempos e a Ciência virão sancioná-la.

A tese do Sr. Guizot conduz, pois, à conclusão que, num tempo dado, não haverá mais religião possível, nem mesmo a cristã, se se demonstrar que é natural aquilo que é tomado como sobrenatural. Foi isso que quis ele provar? Não. Mas é a consequência de seu argumento, e para ela marchamos a passos largos, porque, por mais que se faça, por mais que se amontoem raciocínios, não se chegará a manter a crença de que um fato é sobrenatural quando ficou provado que não é.

A tal respeito somos muito menos céticos que o Sr. Guizot, e dizemos que Deus não é menos digno de nossa admiração, do nosso reconhecimento e do nosso respeito por não haver derrogado as suas leis, grandes principalmente por sua imutabilidade; que não há necessidade do sobrenatural para lhe render o culto que lhe é devido e, consequentemente, para ter uma religião que encontrará tanto menos incrédulos quanto mais é, em todos os pontos, sancionada pela razão.

Em nossa opinião, nada tem o Cristianismo a perder com essa sanção, mas apenas a lucrar. Se algo o prejudicou, na opinião de muitos, foi precisamente o abuso do maravilhoso e do sobrenatural. Fazei com que os homens vejam a grandeza e o poder de Deus em todas as suas obras; mostrai-lhe a sabedoria e a admirável previdência, desde a germinação da plantinha até o mecanismo do Universo, e as maravilhas serão abundantes. Substitua-se em seu espírito a ideia de um Deus ciumento, colérico, vingativo e implacável, pela de um Deus soberanamente justo, bom e misericordioso, que não condena a suplícios eternos e sem esperança, por faltas temporárias. Que desde a infância ele seja alimentado por essas ideias que crescerão com a razão, e fareis muito mais crentes, firmes e sinceros, do que se forem embalados por alegorias, que são impostas ao pé da letra e que, mais tarde, repelidas por ele, conduzi-lo-ão a duvidar de tudo e a tudo negar. Se quereis manter a religião pela via única da ilusão do maravilhoso, só haverá um meio: manter os homens na ignorância. Vede se isso é possível. Por muita insistência em mostrar a ação de Deus apenas nos prodígios, nas exceções, a gente deixa de mostrá-la nas maravilhas que calcamos aos nossos pés.

Certamente objetarão com o nascimento do Cristo, que não poderia ser explicado pelas leis naturais e que é uma das provas mais brilhantes de seu caráter divino. Não é aqui o lugar de examinar esse assunto. Entretanto, ainda uma vez, não contestamos a Deus o poder de derrogar as suas leis. O que contestamos é a necessidade absoluta de tal derrogação, para o estabelecimento de uma religião qualquer.

Dirão que o Magnetismo e o Espiritismo, reproduzindo os fenômenos tidos por miraculosos, são contrários à religião atual, porque tendem a tirar desses fatos o seu caráter sobrenatural. Mas, que fazer, se os fatos são verdadeiros? Não os impedirão, desde que não constituem privilégio de um homem, mas se repetem no mundo inteiro. Outro tanto poder-se-ia dizer da Física, da Química, da Astronomia, da Geologia, da Meteorologia, de todas as ciências, enfim. A tal respeito diremos que o ceticismo de muita gente não tem outra fonte senão a impossibilidade, para eles, de tais fatos excepcionais. Negando a base sobre que se apoiam, negam tudo o mais. Prove-se-lhes a possibilidade e a realidade de tais fatos, reproduzindo-os aos seus olhos, e serão forçados a acreditar.

─ Isso é tirar ao Cristo o seu caráter divino!

─ Então preferis que eles não creiam em nada a acreditarem em alguma coisa? Haverá apenas esse meio de provar a divindade da missão do Cristo? Seu caráter não se destaca cem vezes melhor da sublimidade de sua doutrina e do exemplo que ele deu de suas virtudes? Se não se vê esse caráter senão nos atos materiais que praticou, outros não os fizeram semelhantes, para não falar senão de seu contemporâneo Apolônio de Tiana? Por que, então, o Cristo o superou? É porque fez um milagre muito maior do que transformar água em vinho; alimentar quatro mil homens com cinco pães; curar epilépticos; dar vista aos cegos e fazer andarem os paralíticos. Esse milagre é o de ter mudado a face do mundo; é a revolução feita pela simples palavra de um homem saído de um estábulo, durante três anos de pregações, sem nada haver escrito, ajudado apenas por alguns obscuros pescadores ignorantes. Eis o verdadeiro prodígio, no qual é preciso ser cego para não ver a mão de Deus. Penetrai os homens dessa verdade, eis a melhor maneira de convertê-los em sólidos crentes.

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