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O compromisso com o erro

Autor: Jean Lucas

“Costumo voltar atrás, sim. Não tenho compromisso com o erro.”

Juscelino Kubitschek

A história das liberdades é progressiva na história humana, e a importância das nossas escolhas individuais e coletivas só puderam ser claramente vistas na sociedade pós-moderna. Não é difícil pensar quão árduo era pensar em liberdade de escolhas e progresso quando a sociedade era estamental[1] e de ciência primária. Mesmo nos regimes democráticos da antiguidade, as relações de poder e política eram restritas a grupos seletos. Com o avanço do materialismo histórico[2], novos grupos sociais começaram a participar nas influências do progresso. Surgem estão o desenvolvimento da filosofia cartesiana, a partir de 1637[3] com René Descartes, e mais adiante o liberalismo[4] e as novas ciências sociais e filosofias no período iluminista. Porém, a ideia de que o homem é o senhor de seu destino, de suas escolha e hábitos só foi melhor diferida no século XX com o advento e expansão do Existencialismo, Behaviorismo, a PNL e tantas outras escolas, especialmente após segunda guerra. Todas ciências e filosofias tem seu papel na Lei do Progresso, e todo novo paradigma cria novos limites abrindo novas interpretações e excluindo outras. Apenas as Leis Naturais são imutáveis, o que leva a reflexão que são necessárias muitas lutas para disseminação das trevas da ignorância para alcançarmos a Verdade. Ainda somos comprometidos com o erro.

Tanto o erro quanto o acerto são feitos de escolhas. As escolhas são as causas e seus efeitos são os compromissos que adquirimos a partir delas. A Lei de Causa e Efeito pode ser bem compreendida quando pensamos sobre responsabilidade. Uma personagem muito marcante nos quadrinhos é o Homem Aranha de Stan Lee, e um dos momentos mais emblemáticos na vida desta personalidade da ficção é quando seu tio lhe diz: “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Essa frase dá início a jornada deste herói e nos inspira a pensar no significado das nossas responsabilidades e o poder que temos sobre elas.

A palavra poder vem do latim ‘potere’ que é justamente a capacidade de agir e realizar e, muitas vezes, se confunde com a palavra autoridade. No Novo Testamento, a tradução do grego é dada pelas raízes de duas palavras ἐξουσίαν (exousia) e δυνάμις (dynamis), sendo a primeira com o significado de poder de autoridade; na segunda, “dynamis” é uma ideia de ter poder, através da virtude, das próprias capacidades.

Para poder exemplificar irei utilizar alguns trechos do Evangelho de Lucas (Loukan/ Λουκᾶν) em que essas palavras são utilizadas – descrevo os trechos em grego[5] como também em português para que o leitor que tiver interesse possa se aprofundar[6].

Dynamis – δυνάμις – O poder das próprias capacidades.

Lucas 5:17

Καὶ ἐγένετο ἐν μιᾷ τῶν ἡμερῶν, καὶ αὐτὸς ἦν διδάσκων· καὶ ἦσαν καθήμενοι Φαρισαῖοι καὶ νομοδιδάσκαλοι, οἳ ἦσαν ἐληλυθότες ἐκ πάσης κώμης τῆς Γαλιλαίας καὶ Ἰουδαίας καὶ Ἱερουσαλήμ· καὶ δύναμις Κυρίου ἦν εἰς τὸ ἰᾶσθαι αὐτούς.

Certo dia, enquanto ensinava, achavam-se ali sentados fariseus e doutores da Lei, vindos de todos os povoados da Galiléia, da Judéia e de Jerusalém; e ele tinha um poder do Senhor para operar curas.

Exousia – ἐξουσίαν – O poder da autoridade.

Lucas 5:24

 ἵνα δὲ εἰδῆτε ὅτι ἐξουσίαν ἔχει ὁ υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου ἐπὶ τῆς γῆς ἀφιέναι ἁμαρτίας (εἶπε τῷ παραλελυμένῳ), Σοὶ λέγω, ἔγειραι, καὶ ἄρας τὸ κλινίδιόν σου, πορεύου εἰς τὸν οἶκόν σου.

 Pois bem! Para que saibais que o Filho do Homem tem o poder de perdoar pecados na terra, eu te ordeno– disse ao paralítico– levanta-te, toma tua maca e vai para tua casa”.

Lucas 7:9

καὶ γὰρ ἐγὼ ἄνθρωπός εἰμι ὑπὸ ἐξουσίαν τασσόμενος, ἔχων ὑπ᾽ ἐμαυτὸν στρατιώτας, καὶ λέγω τούτῳ, Πορεύθητι, καὶ πορεύεται· καὶ ἄλλῳ, Ἔρχου, καὶ ἔρχεται· καὶ τῷ δούλῳ μου, Ποίησον τοῦτο, καὶ ποιεῖ.

Pois também eu estou sob uma autoridade, e tenho soldados às minhas ordens; e a um digo ‘Vai!’ e ele vai; e a outro ‘Vem!’ e ele vem; e a meu servo ‘Faze isto!’ e ele o faz”.

Percebemos que no trecho de Lucas 7:9 fica muito mais fácil entender que o sentido de autoridade (Exousia) é de um poder instituído. No caso do centurião é o poder recebido pelo Império Romano, e em Jesus o poder que Deus Lhe institui. Assim, podemos estabelecer que a autoridade (exousia) é um poder instituído por alguém, e dynamis é o poder definido por nossas capacidades. Jesus tinha a capacidade/poder de curar alinhado com Sua autoridade (Lucas 5:24), por isso, nos exemplos de Jesus, podemos tomar um pelo outro como sinônimos.

E isso é tão interesse que se pararmos para pensar, por exemplo, de o por quê as pessoas vão para faculdade? Ora, faculdade do latim provêm de Facultus, i.e., adquirir potere/poder. Vamos para escola/faculdade para adquirir conhecimento, ou seja, adquirir um poder, elevar o aumento de nossas capacidades, de nosso Dynamis. Não obstante, por mais que tenhamos conhecimento de um engenheiro, por exemplo, se não tivermos o diploma válido por uma instituição reconhecida não teremos a autoridade (Exousia) de assinar uma obra. Logo, há poder dotado de autoridade, assim como pode haver uma autoridade que não é dotada de poder. E este último traz consequências muito graves para sociedade, pois quando alguém é dotado de uma autoridade, a qual não possui a capacidade que o cargo/função exige todos abaixo dessa autoridade irão sofrer sérias danos.

Seja no Dynamis ou na Exousia, tanto o poder quanto a autoridade sempre vêm junto com a responsabilidade, quando temos o conhecimento e não o usamos ou fazemos deste mal-uso, erramos. Quando recebemos uma autoridade ou buscamo-la sem termos conhecimento, também erramos, pois nossa incapacidade gera consequências para nós e o próximo.

Sendo, o dynamis uma atribuição pessoal e a exousia uma capacidade social (reconhecida pela sociedade), podemos distinguir que quando assumimos responsabilidade, adquirimos poder. Poder não só de mudar nossa vida, como mudar a vida das outras pessoas. O primeiro passo para que haja qualquer mudança em nossa vida é assumirmos responsabilidades, assumir nossos erros e transformar falhas de ontem nos acertos de hoje e amanhã. É transformar as sombras da ignorância na instrução luminosa. E cada degrau que assumimos na escala do poder e autoridade aumentamos o nosso potencial para subir mais um novo degrau, não podemos dar saltos. O princípio da Lei de Justiça, de que poder e autoridade devem andar juntos, deve ser o mesmo que devemos aplicar em nossas vidas.

Nós não devemos jamais ter nenhum compromisso com o erro, ao negarmos nossas responsabilidades iremos reproduzir as mesmos falhas. E podemos repeti-las por longos períodos nas rodas das encarnações. Nosso nível de poder(instrução) é diretamente proporcional ao nosso nível de responsabilidade, pois Deus não conta nosso tempo de ignorância. Não entender essa lei é como encher o infindável Tonel das Danaides[7]. Ao não ponderarmos os mesmos erros cometidos, quando deixamos de analisar o que nossas emoções e sentimentos querem dizer, quando ignoramos nossas sombras; caímos no abismo das nossas más escolhas, e todos os atos que não tomamos consciência em nossa vida, o nosso inconsciente a rege por nós.

Apenas pelo amor podemos identificar nossos erros, pois assumir responsabilidade é praticar o autoamor, amor ao próximo – somos seres sociais e todos os nossos atos tem reflexo no outro – e amor a Deus, pois só o amamos verdadeiramente quando praticamos às Suas leis (progresso, amor, justiça e caridade, sociedade, trabalho, e etc.). É por isso que “O Amor cobre a multidão de pecados[8], ele permite sairmos do erro e construir novas histórias. Por fim, todas as leis de Deus podem ser expressas através do entendimento e prática do Amor e Responsabilidade (poder e conhecimento), e na dúvida poderemos sempre consultar, além da nossa consciência, o Evangelho Segundo o Espiritismo capítulo VI item 5, onde temos a seguinte instrução do Espírito de Verdade:

“Espíritas! Amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruam-se, eis o segundo. Todas as verdades se encontram no Cristianismo; os erros que nele se enraizaram são de origem humana”. (Tradução de Herculano Pires)

Referência


[1] A Sociedade estamental é bastante estudada na história Ocidental da Alta Idade Média, porém se olharmos a história que até o século XIX tinha uma sociedade escravocrata. Essas sociedades rurais não tinham uma burguesia formada como ocorreu na Europa. O Brasil é um triste exemplo desta constatação, sendo o último país a abolir a escravidão.

[2] Quero dizer o acúmulo de riqueza expresso ao longo dos anos como bem explanado por Karl Marx no seu famoso livro O Capital. Não estamos excluindo a importância da revolução de ideias, mas colocando que ambas são necessárias tanto o valor econômico e material, bem como a evolução das ideias. O acúmulo de riqueza tem como consequência o acúmulo de energia e esforços humanos através do trabalho. É fundamental o acúmulo de recursos para o financiamento do progresso. O entendimento maior sobre tal pode ser encontrado tanto no Livro dos Espíritos como no Evangelho Segundo o Espiritismo.

[3] Ano de lançamento do livro: Discurso do Método.

[4] Ensaio acerca do Entendimento Humano de John Lock foi publicado em 1689.

[5] Estou usando o Novo Testamento Interlinear Grego-Português, vários autores, versão Kindle. Sendo que para o grego estou utilizando a versão: The New Testment in the Original Greek According to Text Followed in The Autorizhed Version, F.H.A., Scrivener; Cambridge:1984. E para o português: A Bíblia de Jerusalém edição de 1985.

[6] Alguns exemplos de Exousia podem ser encontrados nas passagens- Mat 9:6; Mat 20:25; Mat 21:24-25; Mat 28:18; Mar 2:9-11; Mar 10:42; Mar 11:29; Mar 11:33; João 10:18. Dynamis podem ser vistos também em – Mat 7:22; Mat 11:21; Mat 22:29; Mar 9:1; Mar 9:39; Mar 12:24; Mar 13:26; Mar 13:25.

[7] Na mitologia grega existe o mito do Tonel das Danaides. Haviam dois irmãos gêmeos Danaus e Aegyptos, o primeiro tinha 50 filhas (as Danaides) e o segundo 50 filhos. Como forma de dominar o Egito, Aegyptos lançou seu irmão e suas filhas ao exílio em Argos. Os anos passaram e Danaus tornou-se rei de Argos, eis que uma grande seca veio e o reinado de Argos, com a ajuda de Poseidon, conseguiu fontes de água para vencer a seca. Aegyptos interessado nas fontes solicitou ao seu irmão casar seus filhos com suas filhas para poder se apossar de tamanho tesouro. Danaus concordou já que não havia conseguido casar as filhas, contudo, como forma de vingança ao exílio, ordenou as filhas em segredo para que na noite de núpcias levassem uma adaga para matar seus maridos. Com exceção de Hypermnestra, por estar apaixonada, todas executaram o plano, e assim apenas Lynceus sobreviveu. Tempos depois com a morte de Danaus Lynceus assume o trono de Argos e se vinga das 49 cunhadas, já no Tártaro elas tem como castigo a encher de água um imenso tonel, mas quando o tonel estivesse completo estariam livres. Acontece que o tonel não tinha fundo. O Tonel das Daines representa um esforço infindável.

[8] Pedro 4:1

Juventude Espírita: 04/04/2020

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