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O passado

Autora: Teresinha Olivier

Nunca sua vida lhe parecera tão insignificante como naquele dia.

Estava na estação do metrô. Fora mais um dia cansativo, extenuante mesmo. Já estava cansado daquele emprego na fábrica. Nunca sairia daquilo, não tinha futuro.

O trem chegou lotado, como sempre. Acomodou-se em um canto e lá ficou, pensando na sua vida sem graça, sem atrativos. Todo dia, de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Dinheiro curto e sem esperança de dias melhores.

Naquele dia, mais do que em outros, estava vendo as coisas de forma sombria e pessimista. A sua vida de dificuldades pesava-lhe nas costas e o revoltava sobremaneira. Não se conformava em ter uma vida de privações, de ser pobre, de ter o dinheirinho contado para pagar as despesas básicas.

Numa das estações, um grupo de jovens estudantes entrou fazendo algazarra, rindo, conversando em voz alta. Eram jovens da sua idade, bem vestidos, despreocupados, felizes, segundo o seu ponto de vista. Olhou para suas próprias roupas e, envergonhado, encolheu-se mais em seu canto. Sempre tivera um desejo muito grande de estudar, ter um diploma, uma profissão de destaque, mas teve que trabalhar desde cedo para ajudar seus pais.

Morava com seus pais em uma casa modesta, construída por seu pai num pequeno terreno comprado com muito sacrifício quando ele era ainda um menino, mas lembrava-se perfeitamente das dificuldades que passaram para poderem construir o seu lar.

Chegou em casa. Sua mãe preparava o jantar. Seu pai chegaria um pouco mais tarde.

– Olá, filho. O jantar está quase pronto. Ah! Antes que eu me esqueça, a Laurinha ligou.

Laurinha… Era o oásis de sua vida! Era a única coisa que fazia sua vida valer a pena. Namoravam desde bem jovens e se amavam muito. Pretendiam se casar, assim que conseguissem ajuntar um dinheiro para construir mais um cômodo junto à casa dos seus pais. Assim não teriam que pagar aluguel.

Laurinha era professora, não ganhava muito, mas juntando o salário dos dois, daria para terem uma vida em conjunto, formar uma família. Ela era doce, amorosa, sempre o fazia ver o lado bom das situações. Desanuviava a sua mente carregada de pessimismo.

Ainda bem que irei vê-la hoje – pensou – estou precisando muito de suas palavras cordatas e amorosas, do seu carinho e da sua atenção.

Tomou banho, jantou e foi encontrar-se com ela.

Estavam sentados na varanda da casa de Laurinha, de mãos dadas, num doce momento de carinho. Ela lhe falou, amorosamente:

– Então, meu bem, como foi o seu dia? Correu tudo bem no trabalho?

Seu amargor novamente se manifestou:

– Ora, Laurinha, o que você acha? Naquele empreguinho insignificante nada pode ir bem.

– Não pode ser tão ruim assim – disse ela – afinal de contas, você tem um salário fixo,  seu patrão sempre paga em dia, age corretamente com os funcionários. Pense que muitas pessoas gostariam de estar no seu lugar, querido.

– Pode ser, mas eu sonho com coisas maiores. Eu nasci para ser patrão, não empregado, para mandar e não ser mandado, para ter boas roupas, dinheiro, morar num bairro elegante, refinado. Eu sinto isso dentro de mim, você entende? E esse sentimento é muito forte.

– Se você estivesse na situação dos seus sonhos, será que estaríamos juntos? – Perguntou ela, aconchegando-se em seu peito.

Ele a abraçou fortemente e sussurrou no seu ouvido:

– Em qualquer situação, em qualquer lugar do mundo, a minha vida só teria sentido se você estivesse ao meu lado.

Beijaram-se ternamente.

Voltou cedo para casa. Levantava-se às cinco horas e precisava descansar.

Deitou-se. Estava agitado, o sono não vinha. Virava de um lado e do outro, inquieto.

De repente, aconteceu algo muito estranho.

Sentiu um torpor e um formigamento envolveu-o todo. Não conseguia coordenar as ideias, compreender o que estava acontecendo.

Não sabe quanto tempo durou essa sensação. Sabia que não estava dormindo, mas não estava no seu estado normal. Era uma sensação muito estranha.

O mais interessante é que não sentiu medo. Sentia uma presença ao seu lado que lhe dava segurança.

Num dado momento, viu-se num ambiente totalmente diferente. Era uma ampla sala de jantar, com uma fina decoração de um tempo mais antigo. À mesa, estava um casal de meia idade e um jovem. Estavam jantando e conversavam.

Ele a tudo observava como um espectador de uma peça de teatro.

– Então, papai – disse o rapaz – o senhor conseguiu convencer o senhor Guilherme a lhe vender a mansão pelo preço proposto?

– Está por pouco, filho. Acho que mais um dia ou dois e ele se rende. A situação financeira dele está por um fio. Ou ele vende pelo preço que eu quero, ou vai afundar-se ainda mais. Ele está com a corda no pescoço. Está desesperado mesmo.

– Não podemos perder a chance dessa compra, pai. E o pior é que ouvi dizer que ele está ameaçando se matar!

– Fique calmo, filho. Eu sei fazer as coisas. Nós vamos conseguir sim. Depois, ele que faça o que bem entender da sua vida.

 A mulher, elegantemente vestida e cheia de joias caras, ouvia em silêncio. Intimamente aceitava as deliberações do marido e do filho sem restrições.

Era para o bem da família – pensava.

De repente, novamente a sensação de torpor e de formigamento. A cena mudou. Viu-se agora em uma grande fábrica. O mesmo jovem estava sentado atrás de uma mesa de escritório, e à sua frente diversos operários humildes estavam ouvindo suas recriminações:

 – Então, vocês resolveram reclamar! Muito bem. Quem é o responsável por toda essa confusão?

Um dos operários deu um passo a frente:

– Patrão, nós estamos aqui por um motivo justo. Nossos salários estão baixos. Não temos condições de sustentar as famílias. O senhor precisa entender as nossas dificuldades.

– Ah! Eu preciso entender? E quem entende os problemas da fábrica? Quem entende os meus problemas?

– Mas, patrão – respondeu o mesmo empregado – a fábrica está indo muito bem, a produção está ótima. Os pedidos estão sendo entregues dentro do prazo. O senhor não tem motivos de queixas.

– Então é você não é, João? Você é que está liderando tudo isso. Pois fique sabendo que não vou tolerar indisciplina. Você e seus amigos que o acompanharam nessa loucura estão despedidos!

– Por favor, patrão, não faça isso. Temos família para sustentar. A filhinha do Nestor está doente, toma muitos remédios. A mãe do Francisco é paralítica e ele é quem cuida dela. Por favor, patrão, eu imploro, não faça isso. Nós aceitamos o salário de sempre.

Mas não houve jeito. O rapaz permaneceu impassível diante das súplicas.

Novo cenário, nova cena, como se fosse outro capítulo de uma peça imaginária. E ele, o espectador.

Agora era uma igreja, ricamente decorada para um casamento. O noivo era o mesmo moço arrogante. A igreja estava lotada pela alta sociedade da época.

O órgão começou a tocar as primeiras notas e a noiva apareceu na entrada do templo. Demonstrava claramente ter uma idade mais avançada que a dele. Nitidamente, era um casamento de conveniência.

Em meio a toda pompa e luxo, a um canto escuro da igreja, uma jovem a tudo observava sem ser vista, enquanto as lágrimas corriam pelas suas faces.

Ele a tudo observava, perplexo, sem entender o porquê de tudo aquilo.

Mas, aos poucos, foi se identificando com os fatos. De espectador passou a personagem. De observador passou a sentir-se agente daquelas ocorrências.

Aquele moço era ele mesmo, não tinha a menor dúvida a respeito. Aquele casal eram os seus pais, numa situação totalmente diferente, num outro tempo.  E percebeu claramente que aquela jovem que chorava na igreja era a sua querida Laurinha.

Levou um choque e, de repente, tudo a sua volta começou a rodar. Sua mente nublou-se novamente e tudo desapareceu.

Acordou antes mesmo do despertador tocar. Ficou um tempo deitado, olhando para o teto do seu quarto, pensando:

– O que significaria tudo aquilo? Seria um sonho, uma fantasia de sua mente? Porque então a sensação de realidade que o angustiava tanto? Por que a certeza de que ele era aquele jovem prepotente? E por que ele se sentia tão amargurado por ter ferido tão profundamente Laurinha?

Já havia lido alguma coisa sobre reencarnação e sobre lembranças de vidas passadas.

Será que foi isso que aconteceu comigo? – Pensou – Mas por que eu? Qual a finalidade disso?

No Metrô, indo para o trabalho, não conseguia pensar em outra coisa. Lembrou-se das palavras que Laurinha disse na noite anterior:

– Se você estivesse na situação dos seus sonhos, será que estaríamos juntos?

Sentiu-se abalado.

– Se tudo aquilo for real, eu a abandonei por um casamento de interesse. Fui um patrão cruel e egoísta. E meus pais também participaram de tudo!

Chegando à empresa em que trabalhava, procurou Mário, seu amigo espírita que já o convidara diversas vezes para acompanhá-lo ao grupo de estudos do centro. Precisava perguntar-lhe muitas coisas. Combinaram de encontrar-se na hora do almoço.

Expôs ao colega todas as impressões daquela noite. Conforme falava, sentia uma angústia no peito, transpirava, parecia que estava com dificuldade de respirar. Mário observava atentamente suas reações, enquanto ouvia o relato de suas experiências.

Ele não omitiu a sua inconformação com a situação financeira limitada que enfrentava e de como estava revoltado na noite anterior.

– Mário, será que há uma relação com o que eu vi nesta noite? Estou tão confuso, não sei o que pensar. Só sei que foi tudo muito forte. Até agora, as impressões desse sonho, me deixam abalado. Eu posso chamar isso de sonho, Mário? Ou foi outra coisa? Eu não estava dormindo quando tudo começou!

Mário ficou em silêncio por alguns segundos. Sentiu que aquele era um momento de grande importância na vida do seu amigo e não queria de forma alguma falar levianamente. Sentia a sua responsabilidade diante daquele jovem que o olhava com ansiedade, esperando respostas.

– Meu amigo, o que eu posso dizer neste momento é que pelo que você me contou e pela forma como ficou abalado emocionalmente com essas experiências que o tocaram profundamente, me parece que não foi simplesmente um sonho. A impressão que me dá é que você realmente vivenciou essas situações no passado, numa outra existência, e nesta noite você precisou relembrar tudo isso.

– Mas por quê?

– A Doutrina Espírita ensina que o esquecimento de nossas encarnações passadas é o melhor para nós, porém, quando nos lembramos espontaneamente de acontecimentos de vidas anteriores é com uma finalidade útil, é para aprendermos alguma coisa de muita importância, é para darmos um novo rumo às nossas vidas. 

Ele ficou pensativo. Lembrou-se de como estava revoltado. Pensou em seus pais que levavam uma vida de muito sacrifício, mas não eram revoltados como ele. Estavam sempre alegres e procuravam estimulá-lo para o trabalho honesto. Ele percebia agora a grande preocupação dos seus pais para que ele fosse um homem de bem.

Pensou em Laurinha, que sempre procurava levantar o seu ânimo. Mostrava a ele que eram felizes porque tinham um ao outro.

Sentia que tudo aquilo que acontecera naquela noite mexia fortemente com sentimentos e emoções que estavam guardados profundamente na sua consciência.

– Então, Mário, esta vida que estou levando agora é um castigo?

– É claro que não. Não existe castigo nas leis divinas. O que existe são oportunidades de revermos o nosso comportamento, de refazermos a nossa caminhada evolutiva, de aprendermos o que é melhor para a nossa evolução espiritual.

– E tem outra coisa. Eu não via, mas sentia a presença de alguém ao meu lado. O que seria?

– Provavelmente um espírito amigo querendo ajudá-lo.

– E o que devo fazer com tudo isso, Mário?

– O primeiro passo, meu amigo, é guardar muito bem na sua memória todas essas impressões. Não permita que caiam no esquecimento para você não perder a oportunidade de aprender com elas. Seria bom até mesmo que você as escrevesse. E procure estudar sobre esse assunto. Se você quiser participar comigo do grupo de estudos no centro que frequento, tenho certeza que encontrará respostas para suas indagações e saberá dar um encaminhamento proveitoso para sua vida. Nunca se esqueça que o que aconteceu com você nesta noite não é muito comum. Aproveite a oportunidade, meu amigo, não a deixe escapar. É uma oportunidade valiosa para você aprender com as experiências do passado e crescer como espírito imortal que é.

Ele estava realmente muito impressionado com tudo. Ao voltar para casa naquela noite olhou para seus pais com um novo olhar, vendo neles companheiros de uma longa jornada, que juntos erraram, e agora, juntos novamente, estavam tendo a oportunidade de acertar.

Laurinha veio jantar com eles e ele a olhava agora com um amor redobrado, vendo nela seu porto seguro, com quem compartilharia os caminhos, às vezes suaves e às vezes tortuosos, desta encarnação. Mas estariam juntos!

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