Da “sacristia leiga” à volta a Kardec: Um alerta ao movimento espírita

Autor: Norberto Tomasini Junior

Sem Kardec, não há Espiritismo

J. Herculano Pires

Introdução

O Espiritismo nasceu como um sistema racional, experimental e moral, codificado por Allan Kardec em obras fundamentais. O próprio Kardec o definiu como “uma ciência de observação e uma doutrina filosófica” voltada a investigar os Espíritos e suas relações com o mundo material . No Brasil, porém, enquanto o movimento espírita floresceu em número, muitos alertam que ele murchou em profundidade doutrinária. Já em meados do século XX, o filósofo espírita J. Herculano Pires denunciava uma preocupante igrejificação do Espiritismo: os Centros Espíritas teriam se tornado “sacristias leigas”, onde imperam misticismo e fé cega em vez de estudo sério e razão . Hoje, passadas décadas, vale investigar: até que ponto nos desviamos da base kardequiana?

Mundo corporal. Preâmbulo do livro O que é o Espiritismo

Este artigo, em tom investigativo, faz um chamado urgente à consciência dos espíritas. Se nada for feito, corremos o risco de naufragar em um sincretismo místico que, embora use o nome “Espiritismo”, pouco terá em comum com a Doutrina codificada por Kardec. Quais são os desvios atuais? O que Kardec realmente ensinou? Vamos examinar evidências históricas e doutrinárias para entender onde erramos o rumo – e como voltar ao prumo.

A crítica de Herculano Pires: Centros viram “sacristias leigas”

J. Herculano Pires, um dos mais respeitados pensadores espíritas brasileiros, soou o alarme ainda nos anos 1970. Em linguagem contundente, ele afirmou que muitos centros espíritas estavam se parecendo com igrejas, afastando-se do caráter original da doutrina. “O centro espírita tornou-se uma espécie de sacristia leiga em que padres e madres ignorantes indicavam aos pedintes o caminho do Céu” , escreveu Herculano, criticando duramente o que chamou de religiosismo doentio infiltrado no movimento.

Para Herculano, em vez de serem núcleos de estudo e esclarecimento, alguns centros passaram a cultivar práticas emocionais e misticismo desenfreado. Ele observou que havia “um imenso esforço de igrejificar o Espiritismo… formando por toda parte núcleos místicos e, portanto fanáticos, desligados da realidade imediata” . Ou seja, grupos mais preocupados com rituais e devoções acríticas do que com a busca da verdade. O resultado? Crendices e personalismos sufocando a proposta original racional e progressista do Espiritismo.

Herculano Pires também alertou para o risco do sincretismo. Ao abandonar o rigor doutrinário, centros espíritas abririam as portas para influências estranhas, misturando conceitos do catolicismo popular e até práticas afro-brasileiras ao Espiritismo. Essa “infestação do sincretismo religioso afro-brasileiro”, nas palavras dele, acaba deformando a pureza dos princípios kardequianos . Em suma, o Espiritismo estaria sendo diluído num caldo místico-religioso heterogêneo, perdendo sua identidade.

Essa crítica de Herculano não era mero exagero retórico – era um diagnóstico baseado em fatos observados. Basta frequentar diferentes Casas Espíritas para ver comportamentos que dão razão a ele. Encontramos centros onde quase não há estudo sistemático das obras básicas, mas abundam práticas e discursos de tom milagroso. Médiuns idolatrados como se fossem gurus infalíveis; frequentadores em busca de promessas de cura ou soluções mágicas; rituais com passes teatralizados, uso de velas, águas “fluidificadas” e rezas repetidas mecanicamente. Tudo isso faz lembrar cerimônias de outras crenças, confirmando a metáfora da “sacristia leiga”. Mas onde fica Kardec nisso tudo? Infelizmente, fica de lado. E sem Kardec, alertava Herculano, o Espiritismo adoece e perde a alma racional, dando lugar à superstição.

Os desvios doutrinários que colocam a Doutrina em risco

Usaria Espiritismo, pois a Doutrina é inabalável

Mapeando o panorama atual, identificam-se vários desvios que corroboram as denúncias de Herculano Pires. São tendências e práticas que, pouco a pouco, desfiguram a Doutrina Espírita original. Entre os principais riscos estão:

Pouco a pouco afastam o Espiritismo da Doutrina Espirita, sugestão

Sincretismo religioso: introdução de práticas de outras crenças nos centros espíritas, como banhos de ervas, velas, talismãs, orações decoradas e até exorcismos disfarçados de “desobsessão”. Essas misturas satisfazem um anseio místico popular, mas não encontram respaldo nas obras de Kardec. Ele alertou que fenômenos mal compreendidos seriam interpretados de forma supersticiosa pelos ignorantes – e é exatamente o que ocorre quando se adotam elementos ritualísticos estranhos ao Espiritismo.

Personalismo e idolatria mediúnica: em vez de se estudar a mensagem, supervaloriza-se o mensageiro. Médiuns celebridades atraem verdadeiras legiões de devotos, que os tratam como oráculos infalíveis. Essa idolatria fere frontalmente o princípio kardequiano de que a verdade deve prevalecer sobre qualquer personalidade. Na história, sempre que faltou senso crítico, proliferaram falsos profetas e mistificadores.

Mediunismo descontrolado: práticas mediúnicas sem estudo nem disciplina. Há centros onde se dá mais atenção a supostas mensagens de espíritos que às orientações seguras da Codificação. Comunicados contraditórios e até absurdos acabam sendo aceitos acriticamente “porque o espírito falou”. Falta o crivo da razão e do bom senso preconizado por Kardec – o qual recomendava rejeitar toda mensagem duvidosa ou obscura. Como ele ensinou, “O que a razão e o bom senso reprovam, rejeitai corajosamente” , pois “mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira” . Infelizmente, sem estudo, muitos grupos fazem o contrário: aceitam dez mentiras antes de rejeitar uma.

Proliferação de obras apócrifas: romances e livros mediúnicos fantasiosos ganham espaço nas prateleiras, enquanto os livros básicos de Kardec acumulam poeira. Ideias místicas, predições mirabolantes, teorias pseudocientíficas e até dogmas estranhos (como as polêmicas versões adulteradas da obra de Kardec ou acréscimos místicos de outras escolas) são absorvidos sem crítica. Esses conteúdos deturpam a lógica espírita, levando conceitos da Nova Era, teosofia ou religiões orientais ao público espírita como se fossem parte da Doutrina – quando não são.

Abandono do estudo sistemático: muitos centros atuam quase só como locais de atendimento fraterno, passes e caridade assistencialista, deixando em segundo plano o estudo aprofundado das obras básicas. Embora a caridade seja essencial, Kardec deixou claro que instrução e esclarecimento são alicerces da prática espírita. Sem conhecimento doutrinário, até as boas ações podem descambar em práticas supersticiosas. Um centro que não forma seus frequentadores no entendimento da Doutrina vira apenas um “pronto-socorro” espiritual, não uma escola da alma.

Todos esses desvios compõem um quadro preocupante. E o mais alarmante é que a maior ameaça vem de dentro: pela negligência, ignorância ou vaidade de pretensos espíritas, a Doutrina Espírita sofre ataques internos que a desfiguram lentamente. Allan Kardec previu que toda nova Doutrina enfrentaria ataques dos interesses contrariados , mas provavelmente não imaginou que, no futuro, os ataques partiriam dos próprios aderentes desviados. Hoje vemos exatamente isso – uma corrosão insidiosa dos princípios, operada não por opositores externos, mas por aqueles que, sem estudar Kardec, moldam o Espiritismo à sua imagem e semelhança.

Kardec insiste: O espírito da Doutrina está na razão e no estudo

Diante desse cenário, é crucial revisitarmos o pensamento original de Kardec sobre a preservação da Doutrina. Desde o princípio, Kardec deixou claro que o Espiritismo precisaria andar de mãos dadas com a razão, o método e o estudo sério. Na introdução de O Livro dos Médiuns, ele enfatizou o caráter ao mesmo tempo científico e filosófico do Espiritismo . Essa união de investigação rigorosa e consequências morais lógicas é o coração do método kardequiano.

Kardec não era ingênuo: sabia dos riscos de distorção. Por isso, ao viajar e observar o movimento nascente, ele alertou os espíritas sobre a importância da unidade de princípios e da seriedade nos estudos. Em sua Viagem Espírita em 1862, após visitar diversos grupos, Kardec registrou satisfeito que nas cidades onde o Espiritismo prosperava, havia fidelidade à Codificação: “Todos estão unidos em torno dos propósitos defendidos pela Sociedade de Paris e não têm por bandeira senão os princípios ensinados em O Livro dos Espíritos” . Ou seja, os grupos mais firmes eram justamente aqueles que seguiam estritamente os ensinamentos de O Livro dos Espíritos, sem inventar modas ou adotar práticas estranhas. Para manter a Doutrina sólida, a recomendação de Kardec era clara: união em torno dos princípios fundamentais e estudos regulares para compreensão desses princípios.

Ele também enfatizou a disciplina moral como pilar. Nas orientações aos grupos, Kardec reforçava que de nada adiantaria fenômenos extraordinários se faltasse o aprimoramento ético dos participantes. Estudo, unidade e moralidade eram o tripé que garantiria a perenidade do Espiritismo. Sem essas bases, Kardec sabia que o movimento se fragmentaria em seitas e fantasias. Sua lucidez impressiona: muitos dos conselhos dados em 1862 soam escritos para os centros espíritas de hoje, tantos são os problemas semelhantes.

Ciência, filosofia e moral: as três colunas do Espiritismo

Um ponto central que frequentemente se esquece é que o Espiritismo, por definição de Kardec, não é apenas religião, nem apenas ciência, nem apenas filosofia – é a síntese harmônica dos três aspectos. Allan Kardec estruturou a Doutrina Espírita sobre três colunas indissociáveis:

Estruturou o Espiritismo

Ciência: investigação empírica dos fenômenos espirituais, com metodologia e espírito crítico. As mesas girantes e comunicações mediúnicas foram analisadas por Kardec com rigor quase experimental. O Espiritismo surgiu no contexto científico do século XIX e adotou a postura de observar, comparar e testar os fatos espirituais. Sem esse componente de ciência de observação, o Espiritismo perderia sua base de fatos e se tornaria mera especulação ou dogma.

Filosofia: reflexão racional sobre as causas e consequências desses fenômenos, gerando uma compreensão coerente sobre a vida, a morte, a alma e o destino humano. Kardec fazia perguntas, buscava conceitos universais, dialogava com pensadores. Assim, o Espiritismo oferece explicações lógicas para questões existenciais (Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?), construindo um corpo doutrinário filosófico. Sem filosofia, o Espiritismo cairia num tecnicismo vazio ou num espiritualismo confuso sem nexo.

Moral: aplicação ética e espiritual dos ensinamentos, guiando a reforma íntima e a vivência do amor e da caridade. Inspirado no Evangelho de Jesus (lido sem dogmas), Kardec via no Espiritismo uma alavanca para melhorar moralmente o ser humano. Os Espíritos superiores reforçaram princípios universais de bondade, justiça, perdão e disciplina interior. Sem a moral, o Espiritismo seria frio e estéril; com a moral cristã (no sentido filosófico, não institucional), ele se torna um caminho de aperfeiçoamento pessoal e social.

Kardec nunca separou esses três aspectos. Ele combateu tanto o “cientificismo” seco (que nega a alma do Espiritismo) quanto o misticismo religioso cego (que abdica da razão). Em A Gênese, Kardec reafirma que o Espiritismo progride junto com a ciência e jamais será ultrapassado, pois se adapta a novas descobertas sem trair seus princípios básicos: “Caminhando com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem que está em erro em um ponto, ele se modificaria nesse ponto” . Essa flexibilidade mostra que a Doutrina não é um dogma fossilizado – desde que suas bases estejam claras. Somente quem conhece profundamente as obras fundamentais saberá discernir o que é realmente princípio espírita e o que é acréscimo pessoal ou cultural.

Ao enfatizar a tríade ciência-filosofia-moral, Kardec nos deu um critério seguro para avaliar novas ideias ou práticas: elas devem respeitar o equilíbrio desses três pilares. Qualquer ensinamento que contrarie a lógica ou os fatos (ciência) ou que incentive a imoralidade, o fanatismo e a intolerância (moral) não pode ser espírita. Igualmente, qualquer prática que reduza o Espiritismo a rituais e mistérios insondáveis (negando seu caráter filosófico esclarecedor) tampouco é legítima. Resgatar a pureza do Espiritismo implica recolocar ciência, filosofia e moral em seu devido lugar – sem ênfase desproporcional em um e esquecimento de outros.

Reconstruindo o caminho: de volta às obras básicas

Diante de tudo isso, qual é a tarefa urgente para o movimento espírita atual? Em poucas palavras, é hora de reconstruir a casa doutrinária sobre seus alicerces originais. Não se trata de “retroceder ao passado”, mas de resgatar a essência para então avançar de forma segura.

Usaria só retroceder

As obras fundamentais da Codificação Espírita – O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese – em conjunto com os Opúsculos (Viagem Espírita em 1862, O Espiritismo em sua Expressão Mais Simples, etc.) e os volumes da Revista Espírita, são um tesouro doutrinário muitas vezes subaproveitado. Kardec nos legou um método e um conteúdo. Nas páginas da Revista Espírita, por exemplo, ele debatia ideias novas, publicava instruções dos Espíritos superiores e ensinava, pelo exemplo, o exercício do livre-pensar com responsabilidade. O Livro dos Médiuns traz orientações práticas e éticas para toda atividade mediúnica séria. O Livro dos Espíritos estabelece os princípios filosóficos centrais. Nada falta em essência. O que falta, talvez, é humildade nossa em estudar.

Sem esse estudo rigoroso da Codificação, o movimento facilmente descamba para os vícios mencionados. Herculano Pires advertiu que, sem o estudo das obras básicas, o Espiritismo degenera em “superstição, fetichismo e fanatismo” . Não é preciso muita imaginação para ver isso acontecendo: a lacuna do conhecimento sistemático é preenchida rapidamente por crendices e fantasias. Por outro lado, a experiência mostra que onde há grupos dedicados a ler, discutir e compreender Kardec, o Espiritismo floresce de forma sólida e coerente, atraindo pessoas pelo aspecto iluminador e não por promessas milagrosas.

Reconstruir doutrinariamente o movimento espírita significa, pois, retornar às fontes seguras. É estudar com disciplina e método, como fazia Kardec; é comparar qualquer nova teoria com os princípios já estabelecidos; é ter coragem de rejeitar ideias populares se elas contradizem a lógica espírita. Vale aqui recordar a célebre orientação publicada por Kardec: “Mais vale rejeitar dez verdades do que aceitar uma só mentira” . Em outras palavras, é preferível pecar por excesso de cautela do que deixar entrar uma falsidade que contamine todo o edifício doutrinário. Quantos centros hoje não agem inversamente, acolhendo indiscriminadamente qualquer novidade “espiritual”, sem examinar criticamente? Está na hora de aplicar seriamente essa máxima kardeciana.

Conclusão: Fidelidade a Kardec ou dissolução no misticismo

O Espiritismo, como doutrina progressista, não precisa de enxertos exotéricos ou misticismos para se atualizar – ele já é atual, porque se apoia em leis naturais e morais universais. O que precisa ser atualizado, na verdade, é o nosso compromisso com Kardec. É recuperar a coragem de desagradar ao senso comum místico em nome da fidelidade à verdade. Como bem disse Herculano, “sem Kardec, só restarão ruínas” .

O movimento espírita brasileiro encontra-se numa encruzilhada. De um lado, a fidelidade aos fundamentos originais; de outro, a dissolução do Espiritismo num caldo de misticismo emocional irresponsável. Cada centro, cada dirigente, cada trabalhador espírita precisa fazer sua escolha. Ainda é tempo de corrigir o rumo: promover círculos de estudo das obras básicas, revisar práticas à luz da Codificação, ter senso crítico com literatura mediúnica, formar novas gerações de espíritas mais conscientes e menos crédulas.

A escolha é clara. Ou voltamos a Kardec, revitalizando o movimento com a força racional-moral que o fez surgir, ou perderemos a identidade doutrinária e nos tornaremos apenas mais uma seita místico-religiosa sem lastro científico ou filosófico. Mais que nunca, é preciso lembrar: Espiritismo é Kardec. Sem a luz de Kardec, o que se chama de “espírita” pode até continuar existindo em nome, porém estará espiritualmente vazio. O alerta está dado. Cabe a nós, espíritas conscientes, impedir que as “sacristias leigas” ofusquem a grandeza de uma Doutrina que veio, afinal, “para quebrar todas as cadeias da ignorância” – e não para forjar novas algemas de fanatismo. Em última instância, retornar a Kardec é reencontrar o Espiritismo em sua expressão mais pura e verdadeira. Os Espíritos superiores certamente esperam isso de nós. E o futuro do movimento depende dessa escolha, agora.

Em que lado da História nós, espíritas de hoje, queremos ficar? No da fidelidade corajosa aos princípios ou no da acomodação confortável aos desvios? A resposta definirá se teremos um Espiritismo esclarecedor e libertador para legar às próximas gerações – ou apenas a sombra pálida de um ideal perdido.

DICA

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