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É impossível servir a dois senhores

Autor: Rogério Miguez

A questão da fidelidade doutrinária sempre é matéria espinhosa no universo espírita. Quando se levantam seus defensores, de imediato outros também se erguem e alegam, embora se digam igualmente espíritas, não haver nada de grande mal em se tentar dar uma martelada no cravo e outra na ferradura, afinal, os fins justificariam os meios.

Particularmente destaque-se a questão de eventos realizados em nome da Doutrina para venda e divulgação de literatura espírita, contudo, na prática, tem-se observado seus organizadores sendo infiéis, ao compromisso de apenas comercializar obras de reconhecido valor doutrinário, afinal este seria o grande e único chamamento norteando a atividade.

É costume no meio espírita – vem de longa data – organizarem-se feiras de livros espíritas para a obtenção de ajuda financeira visando à manutenção de casas espíritas e de obras sociais à estas vinculadas. Têm por objetivo igualmente divulgar a rica literatura espírita, exercício salutar de importante alcance junto às massas.

Entretanto, nota-se, em alguns casos – não todos, felizmente – que os responsáveis pelos eventos se “esqueceram” das recomendações de Allan Kardec quando registrou[1]: “(…) o Espiritismo sério patrocina com satisfação e zelo toda obra feita em boas condições (…) mas, por outro lado, repudia todas as publicações excêntricas. Todos os espíritas que se empenham para que a Doutrina não seja comprometida devem, pois, esforçar-se para as condenar (…)”.

“Esquecidos” dessa orientação e visando aumentar os retornos financeiros, incluem aqui e ali, misturadas às obras de fato espíritas, de modo semelhante ao joio entre o trigo, outras classificadas hoje em dia com o chamativo jargão da “autoajuda”. Esta ponta do iceberg já seria razão de muita preocupação, caso não houvesse também outra parte do iceberg, talvez a maior e submersa, qual seja a inclusão de obras espiritualistas e de outras religiões sob a tutela da bandeira ecumênica, tão propalada nos dias modernos.

Nada obstante, o cenário ainda não se fez por completo: o iceberg ainda não foi totalmente delineado, pois, lamentavelmente, sendo este o mais grave deslize, comercializam também obras de reconhecido valor antidoutrinário. A título de exemplo, lembremos literatura cujo objetivo é demonstrar a tese de ser Chico Xavier a reencarnação de Allan Kardec, e muitas outras a se apresentarem apenas para confundir, prejudicar e atrapalhar o entendimento correto da Doutrina. Além de perturbar o salutar ambiente espírita, estas obras são usadas também para a obtenção de recursos visando à manutenção de obras sociais, muitas de cunho duvidoso, bem como, e, principalmente, gerar mais livros ditos espíritas, esses de fato não o são, e nunca serão, em um turbilhão voraz cada vez mais intenso e profundo, objetivando a produção de outros ditos livros espíritas.

É de assustar observar centros, instituições e obras sociais tendo em suas razões sociais, ou mesmo em seus nomes, a finalidade espírita como princípio de existência, que se aventuram a disseminar literatura ofensiva à boa lógica doutrinária, em um triste espetáculo público, denegrindo a Doutrina ao misturá-la com obras absurdas e fantasiosas cujo objetivo único é o de causar confusão nos neófitos e a todos os desejosos de aprender sobre o legado de Allan Kardec, endereçado não somente aos espíritas, bem como a toda a humanidade.

Qual a pretensão destes “seguidores” de Allan Kardec permitindo e incentivando conspurcar a Doutrina, ao se vender, comercializar e oferecer livros não espíritas em feiras, livrarias, bibliotecas e clubes de livros? Quais cenários constroem para o futuro da humanidade igualando literaturas elaboradas através da fascinação de seus autores, e são diversos, com as obras construídas por anos a fio de trabalho árduo e constante do Mestre Lionês? Qual a expectativa destes organizadores em relação ao porvir? Esperam receber aplausos? Qual será o futuro do Espiritismo quando esta prática se dissemina mais e mais, criando dificuldades ao incipiente aprendiz entender ser necessário começar exatamente pelo começo, ou seja, pelas Obras Fundamentais, cada vez mais esquecidas e relegadas, afinal, alegam, essas últimas pertencem ao século XIX, e hoje sopram os ventos da modernidade do século XXI?

Alguns chegam mesmo a se vangloriar de terem vendido milhares de obras ao término de suas chamativas feiras, porém, jamais informam quantos livros vendidos não foram espíritas, ostentando aos quatro ventos o “sucesso” de seu empreendimento econômico.

Iludem-se os organizadores destes espetáculos sem qualquer brilho doutrinário, na crença de ser possível servir a dois senhores, pois Jesus já nos advertiu[2]: “Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro”.

No que creem e esperam estes que se intitulam espíritas? Devemos aceitar difundir obras não espíritas sob a alegação de que a obtenção e o emprego do dinheiro gerado se justificariam por ser utilizado em causas nobres?

Há de se observar: alguns eventos destacam já em sua propaganda inicial serem feiras de livros espíritas, espiritualistas e de autoajuda; esta conduta já é bastante preocupante, mas outras sequer possuem a coragem de se explicar, destacando seus reais objetivos, pois divulgam o evento como sendo única e exclusivamente espírita, quando de fato pretendem comercializar qualquer obra apresentando um viés possível de se misturar com as obras doutrinárias. Os primeiros ainda mostram alguma integridade, pois explicitam quais são os seus reais objetivos. Não se pode dizer o mesmo dos segundos.

Façamos juntos um despretensioso exercício de imaginação, vislumbremos Léon Denis, Gabriel Dellane, Camille Flammarion, Alexandre Aksakof, Ernesto Bozzano, William Crookes, Bezerra de Menezes, Cairbar Schutel, Eurípedes Barsanulfo, Carlos Imbassahy, Deolindo Amorim, José Jorge, Herculano Pires, Francisco Cândido Xavier, Therezinha de Oliveira, entre inúmeros outros destacados expoentes da divulgação do pensamento espírita e fiéis seguidores do Mestre Gaulês, adentrando as dependências destes simulacros de feiras espíritas e vendo suas obras, quando lá as encontram, misturadas ombro a ombro com textos de autoajuda ou com volumes de inexpressiva utilidade doutrinária, fantasias elaboradas por médiuns desequilibrados, alguns mesmos, lamentavelmente, totalmente cientes de suas condutas.

Esses poucos citados gigantes da Doutrina, ao construírem metodicamente suas obras sob a inspiração de Espíritos luminares, desenvolvidas no silêncio das noites em seus gabinetes, muitos no passado à luz de vela ou de bruxuleantes lampiões, quando sob inspiração do mais Alto se propuseram a usar de seu tempo livre para, em um tributo eloquente de suas convicções, escreverem, sob a tutela de seus guias espirituais, as suas humildes ideias, todas enfatizando a nobreza de Allan Kardec e dos postulados contidos no mais significativo conjunto de documentos, o Pentateuco espírita, a comprovar e explicar a grandiosidade das leis de Deus e a majestade do único Espírito puro a reencarnar na Terra, Jesus: o que diriam tais Espíritos?

Esses ilustres trabalhadores espíritas, entre tantos outros, pilares na consolidação dos princípios doutrinários, acredita-se, nada mais teriam como opção a não ser lamentar e chorar, lágrimas de desapontamento, de profunda tristeza, de muita apreensão, ao reconhecerem os amados espíritas da Pátria do Cruzeiro, que precisariam ser os baluartes da Doutrina, os sustentáculos das máximas doutrinárias, que deveriam levantar cada vez mais alto a bandeira do Espiritismo, deixando-se levar pelos modismos e pela ganância, em uma tentativa vã e infrutífera de tentar seguir ou agradar a dois senhores.

O assim chamado Apóstolo do Espiritismo, Léon Denis, seguidor natural e um dos maiores discípulos do pensamento do Sábio de Lyon, registrou em um, dentre tantos de seus muitos momentos de cristalina lucidez[3]: “O Espiritismo será o que o fizerem os homens”. E podemos afirmar: certo estava este pensador espírita por excelência, de fato, este seguimento do movimento espírita brasileiro precisa alinhar-se urgente e incondicionalmente com as máximas de Kardec, sob pena de deixarem um legado perigoso, movediço, obscuro e sombrio para todas as gerações porvindouras, quando esperançosas se apresentarem mais uma vez na Mãe Terra em futuro próximo buscando a mesma luz hora procurada por todos nós.

Se mesmo assim, ainda não nos convencermos da impropriedade de comercializar obras sem qualquer vínculo com a Doutrina, em nome do Espiritismo, realizemos mais um singelo exercício. Imaginemos, através de inúmeras imagens à disposição de todos na web, de ninguém mais exceto Allan Kardec, desenhemos em nossas mentes a sua figura adentrando os salões ou tendas onde se abrigam tais feiras e indaguemos: qual seria a impressão deste Espírito que soube honrar na totalidade a missão que lhe foi confiada por Jesus nos presenteando há mais de um século e meio com a inigualável Doutrina dos Espíritos?

Espíritas: permaneçamos fiéis ao Escolhido de Lyon hoje e sempre!

Nota

1. KARDEC, Allan. Viagem espírita em 1862 e outras viagens de Kardec. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 2. reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2011. Instruções particulares dadas aos grupos em resposta a algumas das questões propostas, it. 6.

2. BÍBLIA DE JERUSALÉM. Diversos tradutores. São Paulo: Paulus, 2010. 6 imp. Mateus, 6:14.

3. DENIS, Léon. No Invisível. Trad. Leopoldo Cirne. 9. ed. pg. 8. Introdução, pág. 9. Rio de Janeiro: FEB Editora, 1981.

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