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Guimarães Rosa: Um jeito sertanejo de falar sobre reencarnação

Autor: Aluizio Elias

João Guimarães Rosa é considerado, incontestavelmente, um dos cinco mais importantes autores da língua portuguesa e chega a ser situado por alguns críticos entre os maiores escritores da história da humanidade. Mineiro de Cordisburgo, Guimarães tinha um estilo inconfundível e inimitável. Sua palavra era capaz de perceber e comentar temas obscuros dentro de uma perspectiva sertaneja, lançando mão de um regionalismo transcendental.

A doutrina espírita aparece frequentemente em sua literatura. No consagrado romance “Grande Sertão: Veredas”, o espiritismo se faz presente através da personalidade do enigmático Compadre Quelemém. Riobaldo, o narrador em primeira pessoa da história, sempre recorre aos ensinamentos de seu Compadre Quelemém para tentar entender o que foge à sua compreensão de matuto do sertão.

Espírita, da doutrina de “Cardéque”, Quelemém é quem explica para Riobaldo como as leis cármicas agem sobre a vida dos homens, aproximando corações e aniquilando o ódio. Trazemos a seguir uma dessas passagens memoráveis do livro, onde Riobaldo narra o sofrimento de um garotinho chamado Valtei à luz dos ensinamentos de Compadre Quelemém.

“Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome moderno, é o que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe.

Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta- bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela.

O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – “Eu gosto de matar…” – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura.

A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava?

Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho. Ave, vi de tudo neste mundo! Lá vi até cavalo com soluço – o que é a coisa mais custosa que há”.

Fica, portanto, gravado em nossos corações a belezada prosa de Guimarães e a sabedoria de seus ensinamentos espirituais. Não há como negar que se trata de uma obra inspirada, fruto da sintonia de seu autor com o Mundo Maior.

Fala MEU! Edição 87, ano 2012

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