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No Espiritismo, pode-se questionar textos bíblicos?

Autor: Paulo Neto

O livre-pensamento eleva a dignidade do homem, dele fazendo um ser ativo, inteligente, em vez de uma máquina de crer

KARDEC, Revista Espírita 1867

O erro provém dos que, não se dando conta do progresso das ideias, pretendem poder governar homens maduros, quais fossem crianças

KARDEC, O Céu e o Inferno

Introdução

Vimos na página do Facebook do escritor Liszt Rangel, pesquisador de civilizações antigas, com especial dedicação à pesquisa acerca do Jesus histórico e do Cristianismo Primitivo ([1]), a seguinte postagem:

Ontem, 18/04/19, recebi uma mensagem pelo WhatsApp me proibindo de falar em uma Instituição Espírita em Araruama, RJ. Alegaram que os estudos que faço sobre Jesus e meus textos onde critico alguns pensamentos de certos espíritos famosos não são aceitos por algumas pessoas dentro daquela Instituição. ([2])

Incrível que ainda existam no Movimento Espírita brasileiro pessoas que, em vez de serem “kardecistas raiz”, se põem a idolatrar certos Espíritos e alguns médiuns – emmanuelistas, andreluizistas, humbertocampistas, chiquistas, divaldistas etc. –, de tal forma a espantar a quem tem “o bom senso e a lógica” como parâmetros de avaliação das coisas. Em razão disso, jamais admitem o questionamento do que eles falam, tratam-nos como se fossem portadores da verdade absoluta, sendo, por isso, irrepreensíveis em qualquer coisa que dizem.

Ao lado destes, temos um contingente de adeptos que ficam completamente desconfortáveis quando aparece um estudioso colocando em xeque alguma narrativa bíblica. Talvez sejam muito apegados aos conhecimentos de suas religiões de origem, nas quais é “pecado mortal” (vai direto para o inferno) questionar textos bíblicos, uma vez que os consideram como sendo verdadeiramente “a palavra de Deus”.

Muitos confrades acham que a missão do expositor é a de somente ficar explicando os Evangelhos tais como são, sem a mínima abertura para demonstrar vários erros neles contidos e as vergonhosas adulterações à conta de justificar dogmas. Não mostrar a verdade faz com que as pessoas vivam no erro, ou não?

Para início de conversa, eles não têm a menor ideia, por exemplo, de que “Os nomes dos títulos dos Evangelhos não designam seus autores” ([3]). Imaginamos como se comportarão ao saberem que nós concluímos que nem tudo nas Escrituras é inspirado ([4]), que afirmamos que a traição de Judas é uma história mal contada ([5]), que a morte de Jesus foi por questões políticas e não para remissão de pecados ([6]) e que somos da opinião de que não há nenhuma profecia no Antigo Testamento que se refere ao Messias. ([7])

Para nós, é algo lamentável vermos o arraigado apego, às vezes até inconscientemente, que alguns espíritas demonstram aos dogmas impostos pelas religiões ditas cristãs, nas quais os textos bíblicos nunca podem ser questionados. Parece que não têm a menor consciência de que esses foram escritos por homens, que falavam de sua cultura social e religiosa, além do fato de que, hoje em dia, se sabe que muitos deles foram manipulados e adulterados para se ajustar aos dogmas instituídos.

Pior fica quando percebemos que o próprio Kardec não deixou de questionar alguns dogmas da Igreja – reencarnação, o nascimento de Jesus nas condições ordinárias da vida, sua divindade, seus milagres, sua ressurreição no mesmo corpo físico. O codificador, também, não deixou de fazer sérias objeções sobre a crença no céu e no inferno, em anjos e demônios, nas penas e recompensas futuras, levando ao público uma visão mais consentânea com a lógica para interpretação de tais temas. Será que não se pode seguir-lhe o exemplo?

Em O Céu e o Inferno, falando das religiões, afirmou o Codificador:

[…] O que lhe falta neste século de positivismo, em que se procura compreender antes de crer, é a sanção de suas doutrinas por meio de fatos positivos; é também a concordância de certas doutrinas com os dados positivos da Ciência. Dizendo ela ser branco o que os fatos dizem ser negro, é preciso optar pela evidência e a fé cega. ([8])

Kardec confessa que “O Espiritismo apoia-se sobre fatos. Os fatos, de acordo com o raciocínio e uma lógica rigorosos, dão ao Espiritismo o caráter de positivismo que convém à nossa época. […].” ([9]) (grifo nosso), portanto, temos que avançar pari passu com a Ciência sob pena de perecermos.

Certamente que o surgimento da Crítica Textual ([10]) é um avanço da Ciência; assim, não podemos, de um lado, fingir que ela não existe e, de outro, negar suas conclusões a respeito dos vários relatos bíblicos, pois é público e notório que o positivismo científico, ao longo dos tempos, desenvolveu critérios mais objetivos de análise dos textos bíblicos, aliado aos conhecimentos da cultura, da geografia e da filosofia dos povos antigos; com isso mudaram sobremaneira a visão atual das narrativas bíblicas, mas, infelizmente, poucos espíritas têm notícia disso.

A nossa amiga Maria José Gontijo, de Divinópolis (MG), inspiradamente disse algo que nos faz refletir: “Sabemos que a evolução é inevitável e com ela o progresso do conhecimento. Portanto, como negar a necessidade da contextualização das concepções que não se adequam a este progresso?”

Por outro lado, não podemos deixar de levar em conta que Jesus fez sérias críticas, ainda que de forma sutil, às “revelações” de Moisés. Não fosse isso, é certo que não haveria o Cristianismo e talvez todos nós estivéssemos seguindo o judaísmo.

Vejamos algumas delas, a que nos referimos alhures:

– As Escrituras não permitiam que se trabalhasse no sábado (Êxodo 20,8-11), e os que ousassem desrespeitar essa norma eram punidos com a morte (Êxodo 31,15). Jesus foi, insistentemente, questionado sobre esse ponto; porém sempre dizia a seus opositores: “O sábado foi feito para servir ao homem, e não o homem para servir ao sábado”.(Marcos 2,27.)

– O adultério, segundo a Lei Mosaica (Levítico 20,10), tinha como consequência a pena de morte para aqueles que o praticassem; entretanto Jesus disse à mulher surpreendida em adultério: “[…] Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais”. (João 8,11.)

– Havia uma tradição, entre os fariseus e doutores da Lei, que não era permitido comer pão sem lavar as mãos. A isso responde Jesus: “Não é o que entra pela boca que contamina o homem, mas o que sai da boca, isto, sim, contamina o homem”. (Mateus 15,11.) Obviamente que devemos lavá-las, porém por preceito de saúde e não formalismo religioso.

– Quando de sua célebre pregação à multidão, no episódio que se consagrou com a designação de “O Sermão da Montanha”, por várias vezes Jesus inicia sua fala dizendo “Ouvistes o que foi dito aos antigos”, taxativamente se referindo à legislação mosaica, acrescentando a sua própria interpretação para os variados fatos, dos quais destacamos estes dois:

1º) Naquele tempo, a lei mosaica estabelecia o “olho por olho e dente por dente” (Êxodo 21,24), entretanto Jesus recomendou “não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo contrário: se alguém lhes dá um tapa na face direita, ofereçam também a esquerda!” (Mateus 5,39.)

2º) Contrariamente à lei anterior, que permitia odiar os inimigos (Levítico 19,18), orientou o Mestre que “amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês”. (Mateus 5,44.)

Se fosse para seguir tudo o que os líderes religiosos queriam ou pensavam que fosse o certo, Jesus não teria pregado publicamente nada, bastava calar-se e, cegamente, seguir a Moisés.

Na obra Concepção Existencial de Deus, bem disse o filósofo espírita José Herculano Pires (1914-1979):

Nada justifica a fusão que as igrejas cristãs fizeram do testamento judeu com o testamento cristão. Jesus, como reformador do Judaísmo, corrigiu os excessos místicos da Israel arcaica e apontou novos rumos à compreensão humana do humano. A condenação do formalismo judaico, do conceito errôneo e hipócrita de pureza, do racismo comum às civilizações fechadas e isoladas, bem como a superação dos absurdos preconceitos sexuais, como se vê no episódio da mulher adúltera, o perdão do roubo de Zaqueu sob a condição de reparação do mal cometido, a violação do sábado na sinagoga para atender um doente, a afirmação de que as prostitutas chegariam ao Reino dos Céus antes dos crentes vaidosos de sua pureza convencional são elementos indicadores de uma ética mais humana e ampla que deveria surgir no futuro. O próprio Apóstolo Paulo, tão fortemente marcado pelos preconceitos judeus do tempo, chegou a considerar que as Escrituras antigas estavam superadas pela reforma cristã. Não obstante, as igrejas cristãs até hoje vivem apegadas aos textos antigos, que consideram como a palavra de Deus. ([11])

Herculano Pires, portanto, corrobora o que pensamos a respeito do fato de Jesus não ter mesmo sancionado a legislação mosaica.

O que se vê no discurso de Kardec

Em O Livro dos Espíritos, comentando a resposta à questão 625, Kardec disse:

Se alguns dos que pretenderam instruir o homem na Lei de Deus algumas vezes o transviaram por meio de falsos princípios, foi porque se deixaram dominar por sentimentos demasiado terrenos e porque confundiram as leis que regulam as condições da vida da alma com as que regem a vida do corpo. Muitos deles apresentaram como Leis divinas o que eram simples leis humanas, criadas para servir às paixões e para dominar os homens. ([12])

Em A Gênese, cap. I, item 8, Kardec, detalha um pouco mais:

Infelizmente, as religiões têm sido, em todos os tempos, instrumentos de dominação; o papel de profeta há tentado as ambições secundárias, e tem-se visto surgir uma multidão de pretensos reveladores ou messias, que, valendo-se do prestígio dessa denominação,exploraram a credulidade em proveito do próprio orgulho, da própria cupidez, ou da preguiça, achando mais cômodo viver à custa dos enganados. A religião cristã não tem podido evitar esses parasitas. […]. ([13])

Não nos caberia apontar esses “falsos princípios”, para libertar as pessoas que aportam à Casa Espírita, do jugo dos que interpretam os textos bíblicos estritamente “para servir às suas paixões e para dominar os homens”?

Por oportuno, também destacamos este trecho da resposta à questão 626, de O Livro dos Espíritos:

[…] É por isso que os preceitos que elas [Leis divinas e naturais] consagram têm sido proclamados em todos os tempos pelos homens de bem, e é também por isso que encontramos os seus elementos na doutrina moral de todos os povos que já saíram da barbárie, mesmo que incompletos ou desfigurados pela ignorância e pela superstição. ([14])

Cabe-nos ou não o dever de restabelecer o que se deve entender por Leis divinas e naturais “desfiguradas pela ignorância e pela superstição”?

Na questão 801, Kardec fez a seguinte pergunta: “Por que os Espíritos não ensinaram, em todos os tempos, o que ensinam hoje?” Os Espíritos superiores lhe responderam o seguinte:

“Não ensinais às crianças o que ensinais aos adultos e não dais ao recém-nascido um alimento que ele não possa digerir. Cada coisa tem seu tempo. Eles ensinaram muitas coisas que os homens não compreenderam ou desfiguraram, mas que podem compreender agora. Por meio de seus ensinos, mesmo incompletos, prepararam o terreno para receber a semente que agora começa a frutificar.” ([15])

Será que ainda se deve considerar todos os que buscam as Casas Espíritas como crianças? E quanto ao que desfiguraram nos ensinos de Jesus teremos que fazer “vistas grossas”?

Na “Introdução” de O Evangelho Segundo o Espiritismo, se lê:

Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e dos autores sacros em geral só são ininteligíveis, parecendo alguns até irracionais, por falta da chave que nos faculte compreender o seu verdadeiro sentido. Essa chave está completa no Espiritismo, como já o puderam convencer-se os que o estudaram seriamente, e como todos o reconhecerão melhor mais tarde. […]. ([16])

Por ter um caráter positivista é que o Espiritismo tem condições de restabelecer o verdadeiro sentido dos textos sacros, especialmente aqueles que “são ininteligíveis, parecendo até irracionais”. Ora, para que isso aconteça não há como não fugir de apresentar nova proposta à interpretação de alguns textos bíblicos, ainda que, inicialmente, para algumas pessoas isso cause certo desconforto, mas insistimos: a verdade acima de tudo: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (João 8,32.)

Tomemos, novamente de A Gênese, no cap. I, item 29:

Mas quem ousa consentir e interpretar as Escrituras Sagradas? Quem tem esse direito? Quem possui as necessárias luzes, senão os teólogos?

Quem o ousa? Em primeiro lugar, a Ciência, que não pede permissão a ninguém para conhecer as leis da natureza, e passa por cima dos erros e preconceitos.

Quem tem esse direito? Neste século de emancipação intelectual e de liberdade de consciência, o direito de exame pertence a todo mundo, e as Escrituras não são mais a arca santa na qual ninguém ousava tocar o dedo sem correr o risco de ser fulminado.

Quanto às luzes especiais necessárias, sem contestar as dos teólogos, e por mais esclarecidos que fossem os da Idade Média e, em particular, os Pais da Igreja, não foram suficientes para deixarem de condenar como heresia o movimento da Terra e a crença nos antípodas. ([17]) E sem ir tão longe, os teólogos dos nossos dias não lançaram um anátema sobre a teoria dos períodos de formação da Terra?

Os homens somente puderam explicar as Escrituras com o auxílio do que sabiam: noções falsas ou incompletas que tinham sobre as leis da natureza, mais tarde reveladas pela Ciência. Por essa razão, os próprios teólogos, com muita boa-fé, enganaram-se sobre o sentido de certas palavras e fatos do evangelho. Ao quererem, a todo custo, encontrar nele a confirmação de um pensamento preconcebido, giravam em círculos, sem abandonar o próprio ponto de vista, retornando sempre ao mesmo círculo, sem abandonar suas ideias, de tal modo que só viam o que queriam ver. Por mais sábios teólogos que fossem, não podiam compreender as causas dependentes de leis que ignoravam.

Mas quem julgará as diferentes interpretações, muitas vezes contraditórias, dadas fora da Teologia? O futuro, a lógica e o bom senso. Os homens, cada vez mais esclarecidos à medida que novos fatos e novas leis vão sendo reveladas, saberão separar os sistemas utópicos da realidade. Ora, a Ciência faz conhecer algumas leis; o Espiritismo permite conhecer outras; todas são indispensáveis para a compreensão dos textos sagrados de todas as religiões, desde Confúcio e Buda até o Cristianismo. Em relação à Teologia, ela não poderá, com seriedade, alegar contradições da Ciência, pois nem sempre está de acordo consigo mesma. ([18])

Essa fala de Kardec é claríssima quanto a necessidade no avanço dos estudos dos textos bíblicos tomando-se como base as novas leis que a Ciência e o Espiritismo fazem conhecer. Até quando as interpretações dos teólogos do passado prevalecerão? Eis o nosso desafio:

[…] Todas as Escrituras encerram grandes verdades sob o véu da alegoria e, por se terem apegado à letra, é que os comentadores se transviaram. Faltou-lhes a chave para lhes compreenderem o verdadeiro sentido. Essa chave está nas descobertas da Ciência e nas leis do mundo invisível, que o Espiritismo vem revelar. Daqui em diante, com o auxílio desses novos conhecimentos, o que era obscuro se tornará claro e inteligível. ([19])

Sigamos em frente, vamos restabelecer os ensinamentos de Jesus no seu verdadeiro sentido, mas para isso é necessário abandonar o Jesus mítico, criado pelos teólogos de antanho e mantido pelos atuais, para seguir o Jesus histórico, que é o verdadeiro.

Alguns pontos teológicos refutados por Kardec

Pelo fato do Codificador, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, ter tratado somente do ensino moral de Jesus, alguns confrades pensam que ele nada questionou quanto às interpretações teológicas então vigentes em sua época, muitas delas ainda hoje continuam sendo ensinadas nas igrejas ditas cristãs.

A título de informação: O ESE contém 28 capítulos dos quais 20, ou seja, 71%, tem algum trecho do Sermão da Montanha (SM); se analisarmos pela quantidade de versículos, o SM possui 111 (Mateus 5, 6 e 7), deles 95 são mencionados no ESE, ou seja, 86%.

Fora alguns pontos em O Livro dos Espíritos, entre as obras que lhe desenvolve as partes, encontramos duas em que comentários de Kardec se destacam pelos seus questionamentos à teologia vigente: O Céu e o Inferno (08/1865) e A Gênese (01/1868). Posteriormente, foi publicado o livro Obras Póstumas (01/1890), contendo vários manuscritos de seu acervo particular, no qual encontramos vários textos inéditos em que também se vê suas críticas às interpretações teológicas.

No cap. V – Considerações sobre a pluralidade das existências, de O Livro dos Espíritos, Kardec deixa bem claro que João Batista foi o profeta Elias reencarnado, o que significa dizer que combateu a teologia dominante que não aceita o princípio da reencarnação. Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. IV – Ninguém poderá ver o Reino de Deus e não nascer de novo, reforça isto, ou seja, que Elias reencarnou, voltando na personalidade de João Batista O princípio doutrinário da reencarnação, é bem certo, fere os dogmas de todas as igrejas cristãs, uma vez que todas elas pregam a vida única.

Em O Céu e Inferno, temos Kardec discorrendo, de maneira contrária a interpretação corrente sobre: o céu, o inferno, doutrina das penas eternas, anjos, demônios e quanto à proibição de evocar os mortos.

Em A Gênese, vamos encontrar o Codificador, questionando os seguintes pontos: a gênese mosaica, os milagres de Jesus, a tentação de Jesus, a aparição de Jesus após a morte e o desaparecimento do corpo de Jesus.

Dos milagres, há um que julgamos bem interessante, pois vem ao encontro do que falamos há algum tempo. Trata-se da suposta transformação da água em vinho realizada por Jesus nas Bodas de Caná. Tomaremos estes parágrafos dos comentários de Kardec:

47. Esse milagre, mencionado em um só Evangelho, o de João, é indicado como o primeiro que Jesus fez e, por esse motivo, deveria ser um dos mais marcantes. É preciso que tenha produzido bem pouca sensação para que nenhum outro evangelista fale dele. Um fato tão extraordinário teria impressionado ao mais alto ponto os convidados e, principalmente, o chefe da casa, que parece nem mesmo ter-se apercebido.

Considerado em si esse fato tem pouca importância comparativamente àqueles que testemunham verdadeiramente as qualidades espirituais de Jesus. Admitindo-se que as coisas tenham se passado como são relatadas, é notável que seja o único fenômeno desse gênero que tenha produzido. Jesus era de uma natureza bastante elevada para se ocupar de efeitos puramente materiais, próprios somente para suscitar a curiosidade da multidão que o teria comparado a um mágico. Ele sabia que as coisas úteis conquistariam mais simpatias e lhe trariam mais adeptos do que as que pudessem passar como resultado de uma grande habilidade ou destreza, mas nunca tocariam o coração.

Se bem que, a rigor, o fato possa ser explicado, até um certo ponto, por uma ação fluídica, que o magnetismo oferece exemplos, teriam trocado as propriedades da água, dando-lhe o gosto do vinho. Mas essa hipótese é pouco provável, já que, nesse caso, a água, tendo apenas o gosto do vinho, teria conservado sua cor, o que não deixaria de ser notado. É mais racional ver aí uma dessas parábolas tão frequentes nos ensinamentos de Jesus, como a do jovem pródigo, a do festim das bodas, e tantas outras. Ele teria feito, durante a refeição, alguma alusão ao vinho e à água, de onde tirou uma instrução. O que justifica esta opinião são as palavras que o mordomo lhe dirigiu: “Todo homem serve a princípio o bom vinho e depois que tenham bebido o bastante serve-se então o inferior. Mas, para vós, tendes reservado o bom vinho até essa hora.” ([20])

Da fala do mordomo ao noivo – “Todo homem serve a princípio o bom vinho e depois que tenham bebido o bastante serve-se então o inferior. Mas, para vós, tendes reservado o bom vinho até essa hora. – é que se encontra o significado dessa parábola: Jesus, ou os seus ensinamentos, tanto faz, é o bom vinho, o de melhor qualidade.

Em Obras Póstumas, no cap. Estudo sobre a natureza do Cristo, o Codificador apresenta seus argumentos que batem de frente contra o dogma da divindade de Jesus, e, por tabela, no da Trindade. Esclarece que nada temos nos Evangelhos que possa apoiar a divindade de Jesus, ao contrário, várias de suas falas provam que ele foi um enviado (mensageiro).

O dogma da divindade de Jesus se baseou na igualdade absoluta entre a sua pessoa e Deus, pois que ele próprio é Deus. É este um artigo de fé. Ora, estas palavras, que Jesus tantas vezes repetiu: Aquele que me enviou, não só comprovam uma dualidade de pessoas, mas também, como já o dissemos, excluem a igualdade absoluta entre elas, porquanto aquele que é enviado necessariamente está subordinado ao que envia. Com o obedecer, aquele pratica um ato de submissão. […]. ([21])

A crença na divindade de Jesus e na Trindade são princípios doutrinários de todas as igrejas cristãs, assim, Kardec, ao refutar tais ideias, derruba essas duas crenças, fato que nunca o deixou constrangido e nem que tenha feito algo em que o sentimento de respeito e de amor ao próximo não fosse a base de sua ação.

Mas vejamos algo interessante que Kardec havia colocado um pouco antes:

Nada tendo Ele escrito, seus únicos historiadores foram os apóstolos que, tampouco escreveram coisa alguma quando o Cristo ainda vivia.Nenhum historiador profano, seu contemporâneo, havendo falado a seu respeito nenhum documento mais existe, além dos Evangelhos, sobre a sua vida e a sua doutrina. Aí somente é que se há de procurar a chave do problema. Todos os escritos posteriores, sem exclusão dos de S. Paulo, são apenas, e não podem deixar de ser, simples comentários ou apreciações, reflexos de opiniões pessoais, muitas vezes contraditórias, que, em caso algum, poderiam ter a autoridade da narrativa dos que receberam diretamente do Mestre as instruções. ([22])

Observe bem, caro leitor, Kardec está dizendo que os escritos de Paulo contém apenas “simples comentários ou apreciações, reflexos de opiniões pessoais”, o que contrasta com a visão que muitos espíritas têm do Apóstolo dos gentios.

Vejamos o que exegeta Bart D. Ehman, em Pedro, Paulo e Maria Madalena, diz sobre os escritos de Paulo:

[…] há muito tempo os estudiosos pensam que algumas epístolas do Novo Testamento atribuídas a Paulo foram na verdade escritas sob pseudônimo, redigidas por outras pessoas em seu nome. Isso porque elas, em sua maioria, representam pontos de vista contrários aos das epístolas indiscutivelmente paulinas. Na realidade, seis epístolas foram postas em dúvida, quase a metade de todo o corpus de textos paulinos: 2Tessalonicenses, Efésios, Colossenses, 1 e 2Timóteo e Tito. […]. ([23])

Portanto, os que têm todos os textos paulinos como inspirados ou representando alguma revelação divina, podem estar espalhando coisas não mais condizentes com a realidade, surgida, obviamente, após a Crítica Textual se debruçar sobre eles.

Um pouco mais à frente Ehrman esclarece-nos:

A Bíblia foi escrita em uma época e em um lugar específicos, arrancá-la de seu contexto e fingir que de alguma forma suas palavras vão automaticamente se aplicar a nossa própria época e ao lugar onde vivemos, sem qualquer mudança, é pura loucura (para não ser muito contundente). (

Assim, deve ficar claro a necessidade de contextualizar os relatos bíblicos, e para isso, muitas vezes, é precioso separar o joio do trigo, sob pena de não adentrarmos no verdadeiro sentido daquilo que o autor quer dizer ou narrar.

Conclusão

Por várias vezes ouvimos justificativa deste tipo: “Há questionamentos em relação à Bíblia, que não devem ser falados em reuniões públicas, seriam apropriados a público restrito formado para estudos específicos. Os temas das palestras nas reuniões públicas devem ser apenas os morais, que aliviam e/ou provoquem elevação de pensamentos da parte dos ouvintes.”

Em princípio pode-se concordar com esse tipo de ideia, mas vendo as coisas com mais acuidade, acreditamos que, dentro da Casa Espírita, não se deve ter nenhuma preocupação a não ser a de dizer a verdade, cabe-nos apenas a caridade de fazer o possível para dosá-la, pois “A verdade é como a luz: é preciso habituar-se a ela pouco a pouco, senão ofusca.” ([24])

Entendemos que se nada podemos dizer, então, teremos, por exemplo, que abrir mão de afirmar que Jesus é nosso modelo e guia, silenciar quanto à reencarnação, entre vários outros pontos doutrinários.

Ademais, considerando que as pessoas dedicadas ao esclarecimento do próximo, acreditamos que não é todo improvável que muitas delas possam, em algumas situações, estar sendo assistidas por bons Espíritos que se interessam pelo progresso da Humanidade, levando-se em conta que “As novas ideias só frutificam quando a terra está preparada para recebê-las.” ([25]

Referências

EHRMAN, B. D. Pedro, Paulo e Maria Madalena. Rio de Janeiro: Record, 2008.

KARDEC, A. O Céu e o Inferno. Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, A. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, A. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2006.

KARDEC, A. Viagem Espírita em 1862. Matão, SP: O Clarim, 2000.

PAROSCHI, W. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993.

PIRES, J. H. Concepção Existencial de Deus. São Paulo: Paideia, 2003.

[1] liszt rangel

[2] facebook

[3] e-book

[4] paulo neto

[5] paulo neto 2

[6] paulo neto 3

[7] paulo neto 4

[8] KARDEC, O Céu e o Inferno, p. 29.

[9] KARDEC, Viagem Espírita em 1862, p. 61.

[10] A ciência que procura restabelecer o texto original de um trabalho escrito cujo autógrafo (*) não mais exista é denominada crítica textual. Conhecida nos meios seculares por ecdótica (**), sua aplicação não se restringe ao NT, sendo extensível a qualquer peça de literatura cujo texto original tenha sido eventualmente alterado no processo de cópia e recópia, sobretudo antes da invenção da imprensa no século XV. […]. – (*) Autógrafo: termo técnico que designa o manuscrito original de uma obra; – (**) O termo “ecdótica” foi introduzido na ciência literária por D. Henri Quentin, em sua obra Essais de Critique Textuelle: Ecdotique, publicada em Paris em 1926. (PAROSCHI,Crítica Textual do Novo Testamento, p. 13)

[11] PIRES, Concepção Existencial de Deus, p. 61-62.

[12] KARDEC, O Livro dos Espíritos, p. 286.

[13] KARDEC, A. A Gênese, p. 46.

[14] KARDEC, O Livro dos Espíritos, p. 286.

[15] KARDEC, O Livro dos Espíritos, p. 348.

[16] KARDEC, O Evangelho segundo o Espiritismo, p. 14-15.

[17] Nota da Transcrição: Quando a Terra era considerada fixa no centro do Universo, considerava-se absurda e herética a ideia de habitantes vivendo do lado oposto dela, pois estariam de ponta-cabeça e cairiam do planeta. (N. do E.)

[18] KARDEC, A. A Gênese, p. 54-55.

[19] KARDEC, Obras Póstumas, p. 354.

[20] KARDEC, A Gênese, p. 337.

[21] KARDEC, Obras Póstumas, p. 142.

[22] KARDEC, Obras Póstumas, p. 136.

[23] EHRMAN, Pedro, Paulo e Maria Madalena, p.232-233.

[24] EHRMAN, Pedro, Paulo e Maria Madalena, p. 292-293

[25] KARDEC, O Livro dos Espíritos, p. 287.

[26] KARDEC, O Céu e o Inferno, p. 9.

O consolador – Ano 13 – N 620 e 621 – Especial

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