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Carta do doutor Morhéry

Revista Espírita, fevereiro de 1859

Senhor Allan Kardec,

Eu me felicito por colocar-me em relação convosco, para o gênero de estudo que nos entregamos mutuamente. Há mais de vinte anos que me ocupo com uma obra que devia intitular-se: Estudo sobre os germes. Essa obra devia ser especialmente fisiológica; entretanto, minha intenção era demonstrar a insuficiência do sistema de Bichat, que não admite senão a vida orgânica e a vida de relação. Queria provar que existe um terceiro modo de existência, que sobrevive aos dois outros em estado inorgânico. Esse terceiro modo, não é outra coisa que a vida anímica, ou espírita, como a chamais. Em uma palavra, é o germe primitivo que engendra os dois outros modos de existência, orgânica e de relação. Queria demonstrar, também, que os germes são de natureza fluídica, que são bidinâmicos, atrativos, indestrutíveis, autógenos e em número definido, sobre o nosso planeta como em todos os meios circunscritos. Quando apareceu Céu e Terra, de Jean Reynaud, fui obrigado a modificar minhas convicções. Reconheci que meu sistema era muito estreito, e admiti, com ele, que os astros, pela troca de eletricidade, que podem se enviar reciprocamente, necessariamente, por essas diversas correntes elétricas, devem favorecer a transmigração dos germes, ou Espíritos, que são da mesma natureza fluídica.

Quando se falou das mesas girantes, entreguei-me em seguida a essa prática, e obtive resultados tais que não tive mais nenhuma dúvida sobre essas manifestações. Depois compreendi que tocáramos o momento em que o mundo invisível iria tornar-se visível e tangível, e que, desde então, caminharíamos para uma revolução sem precedente nas ciências e na filosofia. Estava longe de esperar, entretanto, que um jornal espírita pudesse se estabelecer tão cedo, e se manter em França. Hoje, senhor, graças à vossa perseverança, é um fato adquirido, e esse fato é de uma grande importância. Estou longe de julgar as dificuldades vencidas; experimentareis muitos obstáculos, suportareis muitas piadas, mas, afinal de contas, a verdade mostrar-se-á; chegar-se-á a reconhecer a observação do célebre professor Gay-Lussac, que nos disse, em seu curso, a propósito dos corpos imponderáveis e invisíveis, que essas expressões eram inexatas, e, constantemente, apenas nossa impossibilidade no estado atual da ciência; acrescentava que seria mais lógico chamá-los imponderados. Ocorre o mesmo com a visibilidade e a tangibilidade; o que não é visível para um, o é para outro, mesmo a olho nu; exemplo, os sensitivos; enfim, a audição, o odor e o gosto, que não são senão modificações da propriedade tangível, são nulos no homem, com relação ao cão, à águia e a diversos animais. Portanto, não há nada de absoluto nessas propriedades que se multiplicam segundo a organização. Não há nada de invisível, de intangível, de imponderável: tudo pode ser visto, tocado, ou pesado quando nossos órgãos, que são nossos primeiros e nossos mais preciosos instrumentos, tornarem-se mais sutis.

A tantas experiências, com as quais tendes já recursos para constatar nosso terceiro modo de existência (vida espírita), peco-vos acrescentar a seguinte: Queria muito magnetizar um cego de nascença e, nesse estado sonambúlico, dirigir-lhe uma série de perguntas sobre as formas e as cores. Se o sujeito for lúcido, provará, de modo peremptório, que tem, sobre essas coisas, conhecimentos que não pôde adquirir senão em uma ou várias existências anteriores.

Termino, senhor, rogando-vos receber minhas muito sinceras felicitações sobre o gênero de estudos a que vos consagrais. Como nunca tive medo de manifestar as minhas opiniões, podeis inserir minha carta na vossa Revista, se julgardes que isso seja útil.
Vosso todo devotado servidor, Morhéry, doutor em medicina.

Nota

Estamos muito felizes com a autorização que o senhor doutor Morhéry quis nos dar para publicarmos, nomeando-o, a notável carta que acabamos de ler. Ela prova nele, ao lado do homem de ciência, o homem judicioso que vê alguma coisa além das nossas sensações, e que sabe fazer o sacrifício de suas opiniões pessoais em presença da evidência. Nele a convicção não é uma fé cega, mas raciocinada; é a dedução lógica do sábio que não crê tudo saber.

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