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Platão: Doutrina de escolha das provas

Revista Espírita, setembro de 1858

Vimos, pelos curiosos documentos célticos que publicamos em nosso número de abril, a doutrina da reencarnação professada pelos Druidas, segundo o princípio da marcha ascendente da alma humana, à qual faziam percorrer os diversos graus da nossa escala espírita. Todo o mundo sabe que a ideia da reencarnação remonta à mais alta antiguidade, e que o próprio Pitágoras a hauriu entre os Indianos e os Egípcios. Não é, pois, de se admirar que Platão, Sócrates e outros, partilhassem uma opinião admitida pelos mais ilustres filósofos da época; mas o que, talvez, seja mais notável é encontrar, nessa época, o princípio da doutrina de escolha das provas, ensinada hoje pelos Espíritos, doutrina que pressupõe a reencarnação sem a qual não teria nenhuma razão de ser. Não discutiremos hoje essa teoria, que estava tão longe do nosso pensamento quando os Espíritos lhe revelaram, que nos surpreendeu estranhamente, porque o confessamos, com toda a humildade, que o que Platão havia escrito sobre esse assunto especial, nos era, então, totalmente desconhecido, prova nova, entre mil, que as comunicações que nos foram feitas não são o reflexo de nossa opinião pessoal.

Quanto à de Platão, constatamos simplesmente a ideia principal, podendo cada um facilmente convir quanto à parte da forma sob a qual ela é apresentada, e julgar os pontos de contato que pode ter, em certos detalhes, com a nossa teoria atual. Em sua alegoria do Fuso da necessidade, supõe uma conversa entre Sócrates e Glauco, e empresta ao primeiro o discurso seguinte sobre as revelações do Armênio Er, personagem fictício, segundo toda a probabilidade, embora alguns o tomem por Zoroastro.

Compreender-se-á, facilmente, que esse relato não é senão um quadro imaginado para conduzir à ideia principal: a imortalidade da alma, a sucessão das existências, a escolha dessas existências por efeito do livre arbítrio, enfim, as consequências felizes ou infelizes da escolha, frequentemente imprudente, proposições que se encontram, todas, em O Livro dos Espíritos, e que vêm confirmar os numerosos fatos citados nesta revista.

“A narração que vou lembrar-vos, disse Sócrates a Glauco, é a de um homem de coração, Er, o Armênio, originário de Panfília. Foi morto em uma batalha. Dez dias depois, como se carregavam os cadáveres, já desfigurados, daqueles que tombaram com ele, o seu foi encontrado são e inteiro. Levaram-no para casa para fazerem seus funerais, e no segundo dia, quando estava sobre a fogueira, ele reviveu e contou o que vira na outra vida.

“Logo que a sua alma saiu de seu corpo, partiu com uma multidão de outras almas e chegou a um lugar maravilhoso, onde se viam, na terra, duas aberturas, vizinhas uma da outra, e duas outras aberturas no céu que correspondiam àquelas. Entre essas duas regiões estavam sentados os juízes. Desde que pronunciavam uma sentença, ordenavam aos justos para tomarem seu caminho à direita, por uma das aberturas do céu, depois de lhes afixar à frente um letreiro contendo o julgamento dado em seu favor, e aos maus de tomarem o caminho à esquerda, nos abismos, tendo atrás do dorso um escrito semelhante, onde estavam marcadas todas as suas ações. Quando, por sua vez, se apresentou, os juízes declararam que ele deveria levar aos homens a novidade do que se passava nesse outro mundo, e lhe ordenaram escutar e observar tudo o que se lhe oferecia.

“Viu primeiro as almas julgadas desaparecerem, umas subindo ao céu, outras descendo sob a terra pelas duas aberturas que se correspondiam: enquanto que, pela segunda abertura, via saírem as almas cobertas de pó e de imundície, ao mesmo tempo, pela segunda abertura do céu desciam outras almas puras e sem mácula. Todas pareciam vir de uma longa viagem e deterem-se com prazer na campina como num lugar de reunião. Aquelas que se conheciam, se saudavam, umas às outras, e perguntavam as novidades do que se passava nos lugares de onde vinham: o céu e a terra. Aqui, entre os gemidos e as lágrimas, evocava-se tudo o que se sofrerá, ou vira sofrer, viajando sob a terra; lá, contavam-se as alegrias do céu e a felicidade de contemplar as maravilhas divinas.

“Seria muito longo seguir o discurso inteiro do Armênio, mas eis, em suma, o que dizia. Cada uma das almas levava dez vezes a pena das injustiças que cometera durante a vida. A duração de cada punição era de cem anos, duração natural da vida humana, a fim de que o castigo fosse, sempre, o décuplo para cada crime. Assim os que fizeram perecer em grande quantidade seus semelhantes, atraiçoado cidades, exércitos, reduzido seus concidadãos à escravidão ou cometido outros crimes enormes, eram atormentados no décuplo para cada um dos seus crimes. Aqueles, ao contrário, que fizeram o bem ao seu redor, que foram justos e virtuosos, recebiam, na mesma proporção, a recompensa de suas boas ações. O que dizia das crianças que a morte levou pouco tempo após o seu nascimento, merece menos ser repetido; mas assegurava que ao ímpio, ao filho desnaturado, ao homicida, estavam reservadas as penas mais cruéis, e ao homem religioso e ao bom filho as maiores felicidades.

“Presenciara quando uma alma perguntou a uma outra onde estava o grande Ardieu. Esse Ardieu fora um tirano de uma cidade de Panfília mil anos antes; ele havia matado seu velho pai, seu irmão mais velho, e cometido, dizia-se, vários outros crimes enormes. “Ele não veio, respondeu a alma, e não virá jamais aqui. Todos fomos testemunhas, a esse respeito, de um horrível espetáculo. Quando estávamos sobre o ponto de sair do abismo, depois de cumprirmos nossas penas, vimos Ardieu e um grande número de outros, dos quais a maioria eram tiranos como ele ou seres que, numa condição particular, haviam cometido grandes crimes: faziam vãos esforços para subirem, e todas as vezes que esses culpados, cujos crimes eram irremediáveis, ou não haviam suficientemente expiado, tentavam sair, o abismo repelia-os rugindo. Então personagens horríveis, de corpo inflamado, que se achavam lá, acorriam a esses gemidos. Carregaram primeiro, com viva força, um certo número desses criminosos; quanto a Ardieu e aos outros, uniram-lhes os pés, as mãos e a cabeça, e os tendo lançado à terra e os esfolados à força de pancadas, arrastaram-nos fora do caminho, através de sarças sangrantes, repetindo às sombras, à medida que passava algum: “Eis tiranos e homicidas, nós os carregamos para lançá-los no Tártaro.”

Essa alma acrescentou que, entre tantos objetos terríveis, nada lhe causou mais medo do que o mugido do abismo, e que foi uma extrema alegria para ela sair dali em silêncio.

“Tais eram, mais ou menos, os julgamentos das almas, seus castigos e suas recompensas.

“Depois de sete dias de repouso nessa campina, as almas deveram dali partir no oitavo, e se puseram na estrada. Ao cabo de quatro dias de caminho, perceberam no alto, sobre toda a superfície do céu e da terra, uma imensa luz, direita como uma coluna e semelhante à íris, mas mais brilhante e mais pura. Um único dia bastou-lhes para atingi-la, e elas viram, então, na direção do meio dessa muralha, a extremidade das correntes que nela prendem os céus. Aí está o que a sustenta, é o envoltório do vaso do mundo, o vasto cinto que o rodeia. No topo, estava suspenso o Fuso da necessidade, ao redor do qual se formam todas as circunferências (1).

((1) Essas são as diversas esferas dos planetas ou os diversos estágios do céu, girando ao redor da Terra fixada ao próprio eixo do fuso. (V. COUSIN))

“Ao redor do Fuso, e a distâncias iguais, tinham assento sobre os tronos as três Parcas: Láqueis, C loto e Átropos, vestidas de branco e com a cabeça coroada com uma faixinha. Elas cantavam, unindo-se ao concerto das sereias: Láqueis o passado, Cloto o presente, Átropos o futuro. Cloto tocava, por intervalos, com a mão direita, o exterior do fuso; Átropos, com a mão esquerda, imprimia movimento aos círculos internos, e Láqueis, com uma e com a outra mão, alternativamente, tocava ora o fuso, ora as balanças interiores.

“Logo que as almas chegavam, era-lhes preciso se apresentarem diante de Láqueis. Primeiro um hierofante faziam-nas enfileirar em ordem, uma depois da outra. Em seguida, tendo tomado de sobre os joelhos de Láqueis as sortes ou números na ordem pela qual a alma deveria ser chamada, assim como as diversas condições humanas oferecidas à sua escolha, montado em um estrado, falava assim: ” Eis o que disse a virgem Láqueis, filha da Necessidade; Almas passageiras, ides começar uma nova carreira e renascer na condição mortal. Não se vos assinalará vosso gênio, será vós que o escolhereis por vós mesmas. Aquela primeira que a sorte chamar escolherá, e sua escolha será irrevogável. A virtude não está com ninguém: ela se prende a quem a honre, e abandona quem a negligência. Cada um é responsável por sua escolha, Deus é inocente.” A essas palavras esparramou os números, e cada alma pegou aquele que caiu diante dela, exceto o Armênio, aquém não se lhe permitiu. Em seguida o hierofante expôs sobre a terra, diante delas, os gêneros de vida de toda espécie, em número muito maior que não havia de almas reunidas.

A variedade deles era infinita; ali se achavam, ao mesmo tempo, todas as condições de homem, assim como de animais. Havia tiranias: umas que duram até a morte, as outras bruscamente interrompidas acabando na pobreza, no exílio e no abandono. A ilustração se mostrava sob várias faces: podia-se escolher a beleza, a arte de agradar, os combates, a vitória ou a nobreza de raça. Condições sociais completamente obscuras por todos esses lugares, ou intermediárias, misturas de riqueza e de pobreza, de saúde e de enfermidade, eram oferecidas à escolha: havia, também, condições de mulher da mesma variedade.

“Evidentemente, aí está, caro Glauco, a prova terrível para a Humanidade. Que cada um de nós nela pense, e que deixe todos os vãos estudos, para não se entregar senão à ciência que faz a sorte do homem. Procuremos um mestre que nos ensine a discernir o bom e o mau destino, e a escolher todo o bem que o céu nos entrega. Examinemos com ele quais situações humanas, separadas ou reunidas, conduzem às boas ações: se a beleza, por exemplo, unida à pobreza ou à riqueza, ou se tal disposição da alma deve produzir a virtude ou o vício; que vantagem pode ter um nascimento brilhante ou comum, a vida privada ou pública, a força ou a fraqueza, a instrução ou a ignorância, enfim, tudo o que o homem recebe da Natureza e tudo o que tem de si mesmo. Esclarecidos pela consciência, decidamos qual destino nossa alma deve preferir. Sim, o pior dos destinos é aquele que a toma injusta, e o melhor aquele que a formará, sem cessar, para a virtude: tudo o mais nada é para nós. Iríamos esquecer que não há nenhuma escolha mais salutar depois da morte como durante a vida! Ah! que esse dogma sagrado se identifique para sempre com a nossa alma, a fim de que ela não se deixe ofuscar, lá embaixo, nem pelas riquezas nem pelos outros males dessa natureza, e que ela não se exponha, lançando-se na condição do tirano ou em qualquer outra semelhante, a cometer um grande número de males sem remédio e a sofrê-los ainda maiores.

“Segundo o relato de nosso mensageiro, o hierofante dissera: Aquele que escolherá por último, contanto que o faça com discernimento, e que em seguida seja consequente em sua conduta, pode se prometer uma vida feliz. Aquele que escolherá primeiro, guarde-se de muita confiança, e que o último não se desespere.” Então aquele que a sorte nomeou o primeiro avançou com diligência e escolheu a mais considerável tirania; levado por sua imprudência e sua avidez, e sem considerar suficientemente o que fazia, não viu essa fatalidade ligada ao objeto de sua escolha de ter que comer, um dia, a carne de seus próprios filhos e bem outros crimes horríveis. Mas quando ela considerou a sorte que havia escolhido, gemeu, lamentou-se, e esquecendo as lições do hierofante, acabou por acusar de seus males a fortuna, os gênios, tudo, exceto ela mesma (1).

((1) Os Antigos não atribuíam a palavra tirano a mesma ideia que nós; davam esse nome a todos aqueles que se apoderavam do poder soberano, quaisquer que fossem suas qualidades, boas ou más. A história cita tiranos que fizeram o bem; mas como, mais frequentemente, ocorria o contrário, e, para satisfazer sua ambição ou se manter no poder, nenhum crime lhes importava, essa palavra tomou-se, mais tarde, sinônimo de cruel, e se diz de todo homem que abusa de sua autoridade.

A alma da qual Er fala, escolhendo a mais considerável tirania, não buscara a crueldade mas, simplesmente, o poder mais vasto como condição de sua nova existência; quando sua escolha fez-se irrevogável, ela percebeu que esse mesmo poder a arrastaria ao crime, e lamentou fazê-lo, acusando de seus males todos, exceto ela mesma; é a história da maioria dos homens que são os artífices de sua própria infelicidade sem querer confessá-lo.)

Essa alma era do número daquelas que vieram do céu: ela vivera, precedentemente, em um estado bem governado e fizera o bem pela força do hábito antes que por filosofia. Eis por que, entre aquelas que caíam em semelhantes decepções, as almas vindas do céu não eram as menos numerosas, por falta de terem sido experimentadas pelos sofrimentos. Ao contrário, aquelas que, tendo passado por moradas subterrâneas, sofreram e viram sofrer, não escolhiam assim às pressas. Daí, independentemente do risco das classes para serem chamadas a escolher, uma espécie de troca de bens e de males para a maioria das almas. Assim, um homem que, a cada renovação da sua vida neste mundo, se aplicasse constantemente a sã filosofia e tivesse a felicidade de não ter as últimas sortes, aparentemente, depois desse relato, não somente seria feliz neste mundo, mais ainda que, em sua viagem daqui para lá embaixo, e em seu retorno, caminharia pela via unida ao céu e não pela vereda penosa do abismo subterrâneo.

“O Armênio acrescentava que era um espetáculo curioso de se ver a maneira pela qual cada alma fazia sua escolha. Nada de mais estranho e mais digno, ao mesmo tempo, de compaixão e de zombaria. Era, na maior parte do tempo, segundo seus hábitos da vida anterior, que fazia a sua escolha. Er vira a alma que havia pertencido a Orfeu escolher a alma de um cisne, por ódio das mulheres que lhe deram a morte, não querendo dever seu nascimento a nenhuma delas; a alma de Thomyres escolhera a condição de um rouxinol; e, reciprocamente, um cisne, assim como outros músicos como ele, adotaram a natureza do homem. Uma outra alma, a vigésima chamada a escolher, tomou a natureza de um leão: era Ajax, filho de Telamon.

Ele detestava a humanidade, recordando-se do julgamento que lhe tirara as armas de Aquiles. Depois desta, veio a alma de Agamenon, que suas infelicidades tomaram, também, o inimigo dos homens: ele tomou a condição de águia. A alma de Atalanta, chamada a escolher, pela metade, considerando as grandes honras prestadas aos atletas, não pôde resistir ao desejo de se tornar atleta. Epeu, que construiu o cavalo de Tróia, tomou-se uma mulher laboriosa. A alma do bobo Tersita, das últimas a se apresentarem, revestiu as formas de um macaco. A alma de Ulisses, a quem o acaso dera o último destino, veio também para escolher: mas a recordação de seus longos revezes, tendo-o desenganado da ambição, procurou por muito tempo e descobriu, com dificuldade, em um canto, a vida tranquila de um homem privado, que todas as outras almas deixaram à parte. Descobrindo-o, disse que, mesmo que tivesse sido a primeira a escolher, não teria feito outra escolha. Os animais, quaisquer que sejam, passam igualmente uns nos outros ou nos corpos de homens: aqueles que foram maus, tornam-se bestas ferozes, e os bons, animais domésticos.

“Depois que todas as almas fizeram escolha de uma condição, elas se aproximaram de Láqueis, na ordem segundo a qual haviam escolhido. A Parca deu, a cada uma, o gênio que ela havia preferido, a fim de que lhe servisse de guardião durante a sua vida, e a ajudasse a cumprir o seu destino. Esse gênio primeiro a conduzia a Cloto que, com sua mão e com um giro do fuso, confirmava o destino escolhido. Depois de ter tocado o fuso, conduzia-a daí para Átropos, que enrolava o fio para tornar irrevogável o que fora tecido por Cloto. Em seguida avançava-se para o trono da Necessidade, sob o qual a alma e seu gênio passavam juntos. Logo que todas passaram, elas seguiram para o espaço cheio de Letes (o Esquecimento) (1), ( (1) Alusão ao esquecimento que se segue à passagem de uma existência à outra.) onde toleraram um calor insuportável, porque não havia nem árvore e nem planta.

Chegada a tarde, elas passaram a noite junto do rio Ameles (ausência de pensamentos sérios), rio do qual nenhum vaso podia conter a água: se era obrigado a dele beber mas os imprudentes dele beberam muito. Aqueles que dele bebem sem parar, perdem a memória. Dormiu-se depois; mas, pelo meio da noite, sobreveio um estrondo de trovão com um tremor de terra: logo as almas foram dispersadas, aqui e ali, para os diversos pontos de seu nascimento terrestre, como estrelas que jorrassem, de repente, do céu. Quanto a ele, disse Er, impediram-no de beber da água do rio: entretanto, não sabia onde e nem como sua alma se reuniu ao seu corpo; mas pela manhã, tendo de repente aberto os olhos, percebeu que estava estendido sobre a fogueira.

“Tal é o mito, caro Glauco, que a tradição fez viver até nós. Ele pode nos preservar de nossa perda: se lhe acrescentarmos fé, passaremos felizes o Letes e manteremos nossa alma pura de toda mancha.”

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