Autor: Rogério Miguez
A realidade da morte tomou, mais uma vez, o seu lugar de destaque nas sociedades da Terra com a chegada do disciplinador Coronavírus.
Dizemos disciplinador, pois uma das suas funções foi exatamente promover o abrandamento dos desvirtuamentos morais e éticos que grassam no planeta em suas variadas comunidades. Este minúsculo ser tem o poder de não só lembrar ao homem a sua pequenez em relação às forças da Natureza, como mostrar que algo vai mal nesta parte da Humanidade universal, com seus inquestionáveis avanços tecnológicos, embora às custas do acentuado distanciamento das condutas equilibradas condizentes com os princípios cristãos.
A mensagem deste elemento regularizador dos costumes foi dada e cabe agora ao homem ajuizar as suas condutas para melhor se integrar consigo mesmo e com o planeta em que habita, sua morada cósmica. Nada garante que a ação do vírus pandêmico atingirá este objetivo; só o futuro dirá.
E, para demonstrar a sua força, ele se organizou de tal forma que, muito bem adaptado, a despeito de sua primária estrutura íntima, tem a capacidade de promover o colapso total do organismo corporal em uma boa parte daqueles que dele se contaminam, levando à morte o corpo biológico, apesar das técnicas e procedimentos médicos que se mostram, de modo geral, incapazes de controlá-lo, dada a sua eficiência em promover a falência da vida material.
Diante de tal quadro, apavorado, o homem destacou novamente a morte como o maior de seus receios íntimos, uma vez que crê, em sua generalidade, apenas na matéria, embora tenha em mãos, há bom tempo, informações capazes de tranquilizá-lo no que tange a este tema intrigante de todas as épocas, qual seja, o fenômeno da morte.
E uma das obras que possui um poder inimaginável de abrandar este medo, um verdadeiro pavor inspirado pela chegada da indesejável morte, publicado em 1865, intitula-se: O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo.1
Este livro singular, de autoria do francês Hippolyte Léon Denizard Rivail – Allan Kardec -, em um de seus magistrais capítulos, denominado Temor da morte, elenca alguns motivos pelos quais o homem teme a morte, estabelecendo, ao mesmo tempo, as bases e raciocínios para que este mesmo homem, não a tema jamais, pois infundadas são todas as possíveis razões que levam alguns a não terem coragem de pronunciar, sequer, a palavra morte, tal o pavor que ela inspira em suas mentes desinformadas sobre este fenômeno tão natural da vida.
Uma das principais causas do temor se fundamenta no instinto de conservação, presente em todos os seres vivos. Providência sábia e fundamental, atuando vivamente para impedir que o ser humano se destrua prematuramente, enquanto não consegue bem entender a realidade da vida futura. Serve de instrumento para criar uma apreensão natural, um medo instintivo de se auto aniquilar, buscando impedir que o ser vivo abrevie sua existência e se descuide das atividades laborais que o fazem progredir. Alguns, mais desenvolvidos intelectualmente, podem passar por cima deste sábio mecanismo provocando a própria morte – o suicídio -, quando se veem face a face com situações de superlativo conflito emocional, ato que trará, invariavelmente, consequências desastrosas nas existências futuras.
Com o conhecimento mais ajuizado da vida futura e a compreensão da sua missão na Terra, o homem não se desespera, pois sabe que a morte não é o fim de tudo. Convence-se de que reencontrará aqueles que o antecederam na jornada evolutiva, ao passar para o lado de lá, e, com esta certeza, as agruras que caracterizam as existências de todos aqueles que “perderam” seus entes queridos na batalha contra o vírus, são atenuadas. Em alguns casos, podem mesmo desaparecer, dada a convicção dos que ainda vivem na Terra, de que Deus é Pai e não separará pela eternidade afora os filhos que se amam.
O nível evolutivo do Espírito também pode, certamente, causar o temor da morte, desde que o Espírito seja pouco evoluído moralmente, ainda dominado pela sua natureza animal e egoísta. Esta condição faz com que o Espírito se apegue aos seus bens terrenos e, vislumbrando a possibilidade de perdê-los, se apavora com a fatalidade da destruição biológica, inevitável a todos, levando-o a uma vida intranquila, visto que a qualquer momento poderá se ver privado dos tesouros acumulados a todo custo, valores que a ferrugem destrói e a traça corrói…
As religiões organizadas também não têm ajudado os seus seguidores a enxergarem na morte um processo natural, uma Lei de Deus, pois ao defenderem a existência de um inferno e de um céu, caracterizando uma justiça absurda e impiedosa, criam nas mentes imaturas o receio de, ao morrerem, serem conduzidos ao inferno, local de onde jamais sairão; por outro lado, se forem contemplados com as delícias do céu, tristes ficarão se tiverem algum de seus afetos condenados a suplícios infindáveis nas labaredas infernais. O curioso é que mesmo acreditando na existência do céu, o crente tem medo, pois todos desejam ir para o céu, contudo, paradoxalmente, ninguém deseja morrer.
E mais: ao incentivar seus fiéis a realizarem doações vultosas, sob a alegação de que assim fazendo assegurarão um lugar à direita do Criador, criam temores entre aqueles que não dispõem de recursos materiais em abundância, por crerem estes que certamente serão encaminhados para o inferno, já que não puderam garantir, ainda em vida, a compra da entrada nas regiões celestiais. O binômio céu-inferno cria uma forte base para a consolidação da crença materialista, pois o homem de razão se recusa a admitir tal proposta, além de favorecer o receio sobre a hora da morte.
Outra prática que seguramente traz um certo temor ao religioso é a crença no batismo, como um dos requisitos para assegurar seu ingresso nas regiões celestiais, onde poderá gozar as beatitudes do céu. Caso o indivíduo não aceite o batismo, ou tenha falecido prematuramente antes de ser batizado, estará, em princípio, condenado a adentrar as portas do inferno teológico, lá permanecendo.
A sociedade também não auxilia os indivíduos a terem uma visão menos contundente da morte. As cerimônias dos funerais, usualmente, são cercadas de aspectos apavorantes, principalmente para as crianças, que crescem presenciando cenas de adultos desesperados diante do passamento de seus entes queridos. Familiares e amigos vestidos de preto, chorosos e tristes, alguns mesmos blasfemando contra Deus ao permitir que o seu ente amado fosse alcançado pela fria mão da morte, igualmente em nada auxiliam na compreensão e aceitação deste inevitável fenômeno biológico.
Além destas causas, a obra Temas da vida e da morte acrescenta o temporário e necessário esquecimento do passado provocado pelo processo da reencarnação. Quando reingressamos na carne, há um natural olvido das nossas vidas pregressas, o que contribui para a incerteza sobre continuidade da vida, passando o homem a temer o seu término, pois o crê definitivo. Entretanto, esta modalidade do temor pode ser plenamente superada por meio do estudo e compreensão das Leis Divinas, ao alcance de todos, sobretudo na rica literatura espírita, que as esmiuça em sua intimidade.2
A própria ciência também acrescenta a sua cota de incerteza a este momento crucial, quando defende que apenas no cérebro físico se encontra a essência do ser. Se assim fosse, com a destruição do corpo o ser pensante desapareceria, fato que só pode criar uma apreensão a mais nos que já vivem receosos, por esta e por outras razões sobre o possível instante final da existência.
Não há dúvida de que a letalidade do vírus acentuou este temor ancestral, criando no seio das sociedades modernas, ou seja, das famílias, o pânico generalizado, dada a velocidade com que ceifou vidas indiscriminadamente. Fortaleçamo-nos, contudo, com os ensinos doutrinários, como o seguinte, registrado por Allan Kardec ao final de uma resposta dos Espíritos sobre o tema:
“A morte não inspira ao justo nenhum temor, porque, com a fé, ele tem a certeza do futuro; a esperança o faz esperar por uma vida melhor; e a caridade, a cuja lei obedece, lhe dá a segurança de que não encontrará, no mundo para onde terá de ir, nenhum ser cujo olhar ele deva temer.3
Observe-se que neste texto final, os Espíritos acenam para mais uma causa do receio da morte, ainda não comentada: a consciência culpada. Todos aqueles que reconhecem seus deslizes morais e éticos e não sabem como lidar com a multidão dos pecados cometidos, temem, institivamente o reencontro com seus familiares, amigos, inimigos e, principalmente, com o seu anjo guardião. Imaginam quais explicações terão que dar para justificar as falhas cometidas.
Sobre esta última possibilidade, não há razão para o temor injustificado, caso o indivíduo já tenha reconhecido seu erro e já haja estabelecido um programa de vida renovado, buscando viver de forma justa e observando a orientação de Jesus: “Vai e não peques mais”.
Em vez de temer a morte, observemos o que fazemos da vida, pois é esta que deve merecer nossa especial atenção, a fim de que não morramos interiormente enquanto vivemos na carne, aguardando a tão temida morte que não virá jamais.
Referências
1 KARDEC, Allan. O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013. Temor da morte. cap. II. p. 25.
2 FRANCO, Divaldo P. Temas da vida morte. Pelo Espírito Manoel P. de Miranda. 2. ed. Brasília: FEB, 1989. Temor da morte. pág. 67.
3 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. Edição Comemorativa do Sesquicentenário. q. 941.