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Teodora teria matado 500 prostitutas? 

Autor: Paulo da Silva Neto Sobrinho

Não espalhe boatos, nem levante falso testemunho contra a vida do seu próximo 

Lv 19, 16.

Nunca repita um boato, e você não perderá nada

Eclo 19, 7.

Introdução 

Sempre estamos ouvindo companheiros espíritas, preocupados em demonstrar a existência da reencarnação, a dizer que a Igreja, em tempos remotos, a aprovava, como se isso fosse validar tal lei divina. Essas pessoas também apresentam a informação de que a imperatriz Teodora, do Império Bizantino, uma ex-cortesã, teria mandado matar 500 prostitutas. Como se generalizou a suposição de que ela teria que reencarnar essa quantidade de vezes para cumprir seu carma, ela passou a ter um ódio da reencarnação e tudo fez até que, via seu marido, Justiniano, acabou por banir essa crença do seio da Igreja, quando do Concílio de Constantinopla (553).

Em consulta ao Houaiss, lemos:

Cortesã: s.f. (sXV) 1 ant. dama da corte, favorita do rei e ger. mantida por ele; 2 ant. mulher de costumes libertinos, devassos e de vida ger. Luxuosa; 3 prostituta que atende pessoas das altas camadas sociais; ¤ ETIM it. cortigiana ‘dama da corte’, ‘prostituta’; ¤ SIN/VAR dama; ver tb. sinonímia de meretriz. (Dicionário Eletrônico Houaiss. Versão 3.0, jun/2009.)

Colocamos a definição para que fique claro o sentido do termo “prostitutas” que usamos neste texto. 

O que “vários” autores falam disso 

Temos, atualmente, em nossa biblioteca particular setenta e nove livros sobre o assunto reencarnação; vamos ver o que, desse assunto, encontramos neles.

Reencarnação segundo a Bíblia e a ciência, autor José Reis Chaves (1935- ), escritor e bacharel em Comunicação e Expressão: 

[…] a imperatriz Teodora foi uma cortesã e se imiscuía nos assuntos do governo do seu marido, e até nos de teologia.

Contam alguns autores que, por ter sido ela uma prostituta, isso era motivo de muito orgulho por parte das suas ex-colegas. Ela sentia, por sua vez, uma grande revolta contra o fato de suas ex-colegas ficarem decantando tal honra que, para Teodora, se constituía em desonra.

Para acabar com esta história, mandou eliminar todas as prostitutas da região de Constantinopla – cerca de quinhentas.

Como o povo naquela época era reencarnacionista, apesar de ser em sua maioria cristão, passou a chamá-la de assassina, e a dizer que deveria ser assassinada, em vidas futuras, quinhentas vezes; que era seu carma por ter mandado assassinar as suas ex-colegas prostitutas.

O certo é que Teodora passou a odiar a doutrina da reencarnação. Como mandava e desmandava em meio mundo através de seu marido, resolveu partir para uma perseguição sem tréguas contra essa doutrina e contra o seu maior defensor entre os cristãos, Orígenes, cuja fama de sábio era motivo de orgulho dos seguidores do cristianismo, apesar de ele ter vivido quase três séculos antes. (CHAVES, 2002, p. 185-186).

O autor não cita sua fonte, e várias vezes já tentamos, pessoalmente, obtê-la com ele e não obtivemos nenhum resultado positivo. O fato é que, em sua bibliografia, ele não cita Holger Kersten.

E, já de início, queremos deixar bem claro que não queremos de forma alguma contestar a opinião de quem quer que seja e muito menos a do nosso amigo Chaves, cujo trabalho de divulgação do Espiritismo é digno de nota; o que nos move é simplesmente descobrir a verdade dos fatos.

Em Jesus viveu na Índia, o autor Holger Kersten (1951- ), teólogo alemão, é a única fonte, fora a do Chaves, em que vamos encontrar essa história: 

Até agora, quase todos os historiadores da Igreja acreditaram que a doutrina da reencarnação foi declarada herética durante o Concílio de Constantinopla em 553. No entanto, a condenação da doutrina se deve a uma ferrenha oposição pessoal do imperador Justiniano, que nunca esteve ligado aos protocolos do Concílio. Segundo Procópio, a ambiciosa esposa de Justiniano, que, na realidade, era quem manejava o poder, era filha de um guardador de ursos do anfiteatro de Bizâncio. Ela iniciou sua rápida ascensão ao poder como cortesã. Para se libertar de um passado que a envergonhava, ordenou, mais tarde, a morte de quinhentas antigas “colegas” e, para não sofrer as consequências dessa ordem cruel em uma outra vida como preconizava a lei do Carma, empenhou-se em abolir toda a magnífica doutrina da reencarnação. Estava confiante no sucesso dessa anulação, decretada por “ordem divina”! (KERSTEN, 1988, p. 240). 

Em Analisando as traduções Bíblicas, o autor Severino Celestino da Silva  (1949- ) também menciona o caso da morte das quinhentas prostitutas (p. 158), entretanto, como ele cita José Reis Chaves, não o podemos considerar como fonte primária. 

O que encontramos do fato 

O historiador Procópio, citado por alguns dos autores, fez referência a algo sobre as quinhentas prostitutas, conforme isso que encontramos na Web: 

Teodora também devotou considerável atenção à punição das mulheres encontradas em pecado carnal. Ela pegou mais de quinhentas prostitutas no Fórum, que viviam uma vida miserável se vendendo por três óbolos, e enviou-as para a margem oposta, onde foram trancadas em um monastério chamado Arrependimento para forçá-las a reformar sua maneira de viver. Algumas delas, entretanto, jogaram-se dos parapeitos à noite para livrarem-se assim de uma salvação indesejada.(Fonte: http://procopius.net/procopiuschapter17.html). 

Observemos que foi dito que Teodora “devotou considerável atenção à punição das mulheres”, e não que tenha mandado matá-las. Do fato de que “foram trancadas” (presas?), e Procópio não dá mais notícias do que aconteceu a elas, podemos supor qualquer coisa; entretanto, isso ficará no campo da hipótese.

Pesquisando a informação acima na obra História Secreta, de Procópio, encontramos o seguinte: 

Teodora, entretanto, gostava também de imaginar castigos para os delitos contra os costumes. Reuniu mais de quinhentas prostitutas, que exerciam o seu comércio em plena praça pública por três óbolos – o necessário para sobreviver – e as expediu para a margem oposta a fim de encerrá-las no mosteiro chamado Metanoia (Arrependimento), forçando-as a mudar de vida. Algumas delas se lançaram, à noite, do alto do mosteiro e escaparam assim a uma mudança que não desejavam. (PROCÓPIO, s/d, p. 47).

Relato bem próximo do anterior, o que descobrimos na Internet. Continuando a pesquisa, encontramos algo no escritor e jornalista italiano Carlo Maria Franzero (1892-1986), em referência a esse episódio: 

Era apenas natural que a Basilissa exercesse a sua influência em favor das antigas colegas e, assim, quinhentas prostitutas por modestíssimo preço exerciam abertamente a sua profissão no Fórum, foram convidadas coercitivamente a entrar no novo convento do Arrependimento, na outra margem do Bósforo – retiro magnífico para quem quisesse meditar. Ao que parece, porém, muitas destas donzelas não se deram bem com o regime e preferiram atirar-se ao mar, durante a noite, com nítida desvantagem para as possibilidades de salvação das suas almas. (FRANZERO, 1963, p. 87). 

O francês Francis Fèvre (1951- ), historiador especialista em sociedades antigas do Oriente Médio, especialmente no Egito e Bizâncio, nos acrescenta mais coisas a essa história: 

[…] Para evitar a acusação de impiedade, Teodora não as devolve à perambulação nas ruas sombrias, nas discretas pracinhas. Talvez com o objetivo de encarnar com convicção seu novo papel de imperatriz, faz encerrar as prostitutas em um convento fundado para esse fim.

Difícil seria dizer se a antiga cortesã, amaldiçoada por todo o clero da capital, agiu por piedade ou por diplomacia. Mas, as pecadoras resgatadas a peso de ouro teriam dispensado uma vida monástica. O novo convento destinado a acolhê-las na capital mostra claramente seus objetivos: todos os habitantes o conhecem pelo nome de convento do Arrependimento. Os muros são bastante altos, uma fuga poderia deixar aleijadas as pecadoras que se arriscassem. Essas mulheres devem passar o resto de suas vidas à sombra dos muros e das edificações do convento, mantidas por uma verba significativa doada por sua benfeitora, para glória de Teodora, destinada ao céu por sua piedosa colaboração para salvar almas em perigo. (FÈVRE, 1991, p. 173). 

Bom; não temos como efetivamente saber qual a razão de Teodora ter mandado trancafiar as quinhentas prostitutas. O que podemos deduzir, desse episódio, é que algo de grave estaria acontecendo a elas, pelo motivo de algumas delas se jogarem do alto do mosteiro, buscando a morte, para não ficarem trancadas.

Pelo que pudemos apurar, o historiador Procópio, fonte primária desses relatos, só veio a escrever o seu livro Anedotas (História Secreta) em 558. O que estranhamos, conforme já dito, é que, depois do relato do confinamento das prostitutas, nenhuma linha a mais ele fala delas, deixando-nos com uma forte impressão de que foram “apagadas” mesmo; mas é mera hipótese, sobre a qual não temos nenhum elemento para precisar o que, de fato, teria acontecido. Particularmente, não acreditamos que Teodora as tenha trancafiado para fazer delas quinhentas monjas, preocupada em salvar-lhes as suas almas do pecado ou que, talvez, tivesse o pensamento de melhorar-lhes a sorte, garantindo-lhes um sustento para o resto da vida. 

Um conglomerado amargo de mexericos 

Não podemos deixar de informar que o viamonense Mário Curtis Giordani (1921), filósofo e teólogo, coloca Procópio como historiador pouco confiável: 

“O historiador Procópio, em sua História Secreta, apresenta-nos um retrato muito vivo (mas não muito digno de fé) da vida tempestuosa da filha de um domador de ursos, a qual, na palavra de Diehl, ‘divertiu, encantou e escandalizou Constantinopla’.” (GIORDANI, 1968, p. 47.).

“A terceira obra de Procópio, a História Secreta, é considerada por Runciman[33] ‘um conglomerado amargo de mexericos’. A ‘História Secreta’ difere, com efeito, fundamentalmente das outras duas e sua autenticidade chegou a ser posta em dúvida pelos críticos. Essa obra é um libelo grosseiro contra Justiniano, Teodora e o próprio Belisário. A Justiniano o autor atribui a causa de todos os males que, então, caíram sobre o Império.”

[33] Lingenthal, Karl Eduard Zachariä von, Geschichte des Grieschisch-Römischen Rechts. – Aalen in Württenberg – Verlag Scientia 1955. (Photomecanischer Nachdruck).
(GIORDANI, 1968, p. 192.)

O professor Vicente Dobroruka (1969- ), do Departamento de História, Universidade de Brasília, gentilmente, respondendo-nos a um e-mail, disse:

Minha opinião é que o episódio do “suicídio” evoca dois lugares comuns literários na historiografia antiga: um, o moralismo (uma vez prostituta, sempre prostituta – e isso me parece fora de dúvida que Teodora tenha sido, mas não se seguem disso implicações sobre sua crueldade); o outro, o dos suicídios coletivos de habitantes cercados em cidades das quais não tinham como sair. As “500 prostitutas” teriam, de certo modo, preferido a morte a renunciarem à lascívia (mais moralismo…), mais ou menos como os zelotes de Masada em Flávio Josefo (Guerra dos judeus, 7). Não creio na história, como representação factual e autêntica. Leve em conta também a tendência de *todos* os historiadores antigos a exagerarem nos números. (Procópio mesmo fala em “milhões” mortos por Justiniano – levado a sério, não sei como a espécie humana sobreviveria a tal fato.) (DOBRORUKA, 2009, por e-mail.).

Trazemos também o que disse o jornalista americano Paul Iselin Wellman (1895-1966): 

Referem-se a respeito de Teodora, particularmente dos últimos tempos do seu reinado, fatos que atestariam crueldade e falta de escrúpulos. Alguns deles são visivelmente falsos, como por exemplo a desacreditada Anecdota de autoria de Procópio, segundo a qual um filho, ostensivamente nascido das suas relações com algum admirador, na época em que era cortesã, apareceu para legitimar o seu parentesco com a imperatriz, donde, segundo Procópio, “receando que a história chegasse aos ouvidos do imperador”, Teodora fez desaparecer para sempre o rapaz.

[…]

A respeito de Procópio, historiador oficial do reinado de Justiniano, a maioria do que se conta em desabono de Teodora baseia-se na sua grosseira “história secreta”, intitulada Anecdota. Os motivos dessa inimizade implacável para com a imperatriz são ignorados. Nos seus relatos oficiais, Procópio mostra-se adulador servil. Enquanto escrevia as suas obras a respeito de guerras e realizações do império, compilava uma obra secreta onde reunia qualquer mexerico, insinuação ou calúnia que pudesse recolher.

A falsidade da Anecdota revela-se através de inverdades óbvias, que prejudicam todo o seu conteúdo. Por exemplo: o historiador assegura, com toda a seriedade, que Justiniano e Teodora não eram seres humanos e sim demônios que haviam assumido forma humana. E aduz a evidência alegada para provar a sua asserção ridícula. Outros seus relatos são, além de contraditórios, impossíveis de aceitar. E o seu hábito de deturpar até mesmo os atos louváveis do par imperial, para que se afigurem perniciosos, prova a animosidade que perpassa através de toda a obra.

Não obstante, é nesse documento secreto, escrito aparentemente para desabafar o próprio rancor, e que não se destinava à publicação, vindo à luz somente séculos depois – quando já era demasiado tarde para aprovar ou desaprovar a maioria das suas asserções – que muitos se baseiam, nos dias que correm, para as suas estimativas acerca do caráter de Teodora. O legado da pena despeitada dum homem que a odiava secretamente foi o mais mortal dos golpes desferidos contra a bela imperatriz, embora ela não vivesse o bastante para ter conhecimento disso.

Entretanto, houve atos de tirania e crueldade, atestados por outras fontes mais dignas de confiança do que Procópio. A esse respeito, cumpre-nos dizer que tirania e crueldade eram comuns naquela época, e sob esse ponto de vista a imperatriz não era pior – se tanto igualmente perversa – do que os seus contemporâneos assentados em tronos.

A despeito de todas as suas falhas, ninguém, nem mesmo o seu amargo inimigo anônimo, Procópio, pôde acusá-la jamais de haver faltado, no tocante à lealdade e à fidelidade a Justiniano. O absoluto silêncio que se observa a respeito dum assunto, que teria sido dos primeiros a ser explorados em desabono da imperatriz, constitui a prova máxima de que, ao se casar, ela deixara para sempre pensamentos e atitudes de sua vida de cortesã. Trabalhou incessantemente para a glória do marido, o imperador, e muito do que se lhe aponta foi feito por amor dele. (WELLMAN, p. 399-401.).

Diante de tudo isso que colocamos, fica mais do que evidente a dificuldade que temos em buscar os dados históricos, pois alguns se baseiam em interesses do autor e outros apresentam problemas na tradução, sem falar naqueles que são falseados.

Conclusão 

Dos setenta e nove autores constantes de nossa biblioteca, somente dois relatam o episódio no qual Teodora teria condenado à morte as quinhentas prostitutas.

Um deles foi Holger Kersten, teólogo alemão, que apresenta uma vasta referência bibliográfica, que demonstra a extensão de seu trabalho de pesquisa. José Reis Chaves é o outro; porém não informa a sua fonte primária. Representam juntos apenas 2,5% das obras de que dispomos. Em razão disso julgamos ser muito pouco para um assunto tão grave como esse; e que, levando-se em conta a nossa pesquisa, não temos base para afirmar, com absoluta certeza, o que realmente teria acontecido. A única coisa que temos como certa é o fato de que Teodora recolheu as quinhentas prostitutas, para, contra a vontade delas, interná-las no mosteiro Arrependimento. O que aconteceu daí pra frente é obscuro; nada conseguimos apurar.

Entretanto, a questão se faz complexa, pois o fato de outros autores não mencionarem o caso não significa, necessariamente, dizer que não ocorreu; porém o fato de não ser referenciado por outros historiadores, isso, sim, deixa-nos sem condições de avaliar se o episódio não ocorreu ou, apenas, não mereceu ser registrado.

Diante disso, e como temos, no fundo, uma só fonte primária, mesmo sem a termos como inverídica, julgamos prudente, no presente caso, aguardar que nos apareça, pelo menos, uma outra fonte primária que relate isso. Vimos esse fato em vários textos, mas alguns autores nem mesmo citaram a fonte; outros apenas mencionaram um desses dois autores, de que falamos em parágrafo anterior, o que nos faz continuar no mesmo ponto, como se estivéssemos ancorados.

Em nossa modesta opinião, se nos permitem os companheiros de doutrina, não é nada prudente ficar retransmitindo essa informação de que Teodora teria matado 500 prostitutas, mesmo que a fonte possa vir do plano espiritual, pelo simples motivo de que os Espíritos não sabem tudo e só falam do que aprenderam nos bancos de escola, ou seja, não são infalíveis e podem, pois, passar informação equivocada. Quem aceita tudo que lhe falam não segue as orientações dos Espíritos superiores; daí torna-se, na verdade, um fanático. Além disso, ainda podemos encontrar mensagens “assinadas” que são fruto do pensamento ou da crença do próprio médium. 

Referências

CHAVES, J. R. A Reencarnação segundo a Bíblia e a Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2002.

FÈVRE, F. Teodora, a imperatriz de Bizâncio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

FRANZERO, C. M. Teodora. Lisboa: ENP, 1963.

GIORDANI, M. C. História do Império Bizantino. Petrópolis, RJ: Vozes, 1968.

KERSTEN, H. Jesus viveu na Índia. São Paulo: Best Seller, 1988.

PROCÓPIO. História Secreta. Belo Horizonte: CEDIC, s/d.

SILVA, S. C. Analisando as traduções bíblicas. João Pessoa: 2001.

WELLMAN, P. I. Teodora, de cortesã a imperatriz. Rio de Janeiro: Vecchi, 1961. 

O consolador – Ano 10 – N 471 e N 472 – Especial

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