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Alzheimer: Sua história não é mais a mesma

Autor: Thiago Rosa

Cada dia que passa é exatamente um novo dia na vida de cada ser humano. Uma hora as coisas vão bem, a saúde é boa, a sorte parece que joga a seu favor, as alegrias parecem eternas e as boas notícias chegam com maior frequência. Vira a página, o dia, e tudo parece inalcançável e sua vida pode mudar de vez de uma hora pra outra. Vale à pena aproveitar todos os momentos enquanto há tempo. Tempo que não parece faltar nunca, mas uma hora ele evapora.

Imagine suas lembranças então indo embora, se diluindo no passar das horas, como a areia que se esvai até seu último grão na ampulheta. Suas idéias desintegrarem junto com o bom senso, com sua vaidade, seus bons gostos, sua fome pra comer, sua sede pra beber, seus desejos de criança, seus sonhos, sua matemática, sua história? Como um barco à deriva. Como um naufrágio, que a água vai consumindo cada espacinho e embaralhando toda sua mente, fazendo vir à tona o passado que não se lembrava mais, ou apagando de vez os rostos que compuseram cada minuto de sua vida. Não há como imaginar um precipício desses.

Lembro-me dos primeiros momentos de maior evidência como se fosse hoje. O porta-malas do carro se abrindo cheio de sacolas de compras na área ensolarada da casa. No canto, próximo a porta, uma pergunta no ar se dirigia a mim enquanto passava com a mão pesada de alimentos: “Você trouxe feijão?” Minha resposta imediata: “Claro que sim vó”.

Era uma pergunta simples com certeza. O que não era simples é ouvi-la cinco vezes seguidas em todas as oportunidades que passava pela porta cheio de compras nos braços. E todas as vezes eu respondi da mesma forma: “Claro que sim vó”.

Teste de paciência. Esta é a maior prova para quem convive com uma pessoa que se vê aos poucos subjugada pelo Mal de Alzheimer. Você não pode perdê-la em nenhum momento. Com o tempo, você aprende que a paciência que você achava que tinha, era tudo ilusão. Paciência é uma coisa que não existe na lida diária de quem cuida ou convive com pessoas sob estes cuidados.

“Certa vez eu entrei no quarto e vi minha avozinha deitada na cama. Tinha acabado de comer, aproveitei pra ficar ali do lado dela, na cama. Ela sorriu pra mim. Fechei os olhos pra fazer a sesta quando minha mãe abriu a porta e perguntou para minha avó o que ela tinha que estava rezando. Ela de pronto respondeu apontando pra mim com o dedo que tinha um homem estranho deitado do lado dela”, conta saudosamente Aloir Marcos Sinhor, que viu sua avó se definhar aos poucos.

“Chegava a ser engraçado toda vez que abria a porta ela se sentir surpresa que eu estava lá”, completa Sinhor. Sua avó faleceu um dia depois do Natal do ano passado. Ultimamemnte não tem sido tão incomum ouvir das pessoas próximas, amigos, colegas, parentes, que fulano tem pais ou avós com a síndrome que foi descoberta pelo alemão Alvois Alzheimer.  De 20 pessoas que trabalham comigo, pelo menos cinco delas tem casos da doença na família. São nada menos do que 25%.

Descrita pela primeira vez em 1906, Mal de Alzheimer é uma doença degenerativa e até hoje incurável. O que existe é tratamentos paliativos para melhorar o estado de saúde, tratar os sintomas, amenizar as possíveis alterações de comportamento, retardar o processo contínuo de degeneração e dar um maior conforto ao dependente e à família. Tem sido atualmente a principal causa de demência em pessoas com idade superior a 60 anos. Cerca de 1% dos idosos com idade entre 65 e 70 anos são portadores do Mal. Valor este que aumenta conforme aumento da idade, indo para 6% aos 70 anos, 30% aos 80 e mais de 60% depois dos 90 anos.

Para a família uma das maiores dificuldades é aceitar que o parente foi diagnosticado com a doença. E a paciência é amplamente testada. A doença acaba tendo grande impacto em todos os membros da família. Incluindo as crianças. Sua presença é caracterizada por um progressivo e irreversível declínio em determinadas funções intelectuais como a memória, orientação do tempo e espaço, pensamento abstrato, a incapacidade de realizar cálculos simples, alguns distúrbios na fala, na comunicação e até de realizar atividades simples do dia. Mais avançado, ainda por gerar mudança de personalidade e capacidade de julgamento.

Estima-se que no mundo todo cerca de 35,6 milhões de pessoas sofrem da doença. O que não podemos esquecer que o número de idosos vem crescendo consideravelmente. Com melhor qualidade de vida, as pessoas morrem cada vez mais tarde, podendo aumentar este índice na população dos envelhecidos. Em razão disso, é previsto que em 2030 serão 65,7 milhões e em 2050 cerca de 115,4 milhões. Não é por acaso que as pesquisas continuam avançando em busca da cura.

“É por isso que eu leio bastante e procuro deixar minha mente trabalhando, não quero morrer disso”, é o que diz a maioria das pessoas quando indagadas sobre o Alzheimer. Mas o certo é que até hoje não se conhece o que pode ocasionar este Mal. Pessoas que trabalharam a vida inteira com funções que tiveram que usar continuamente o raciocínio, a lógica, a leitura, não estão imunes, assim como muitas com estas características são atingidas. A diferença também entre os sexos gera dúvidas. É certo que as mulheres são as mais atingidas, por outro lado elas tem maior expectativa de vida e vivem pelo menos cinco anos mais que os homens.

O Mal de Alzheimer é hoje classificado em quatro fases. No primeiro momento há a perda de memória, confusão e desorientação, dificuldades nas atividades diárias. Em um segundo momento pode ocorrer dificuldade de reconhecer parentes, se perder em lugares conhecidos, alucinação, dificuldade com a comunicação, movimentos, fala repetida, início das dificuldades motoras. Na terceira fase existe a dependência total, imobilidade cada vez maior, incontinência urinária e fecal, uma tendência em assumir a posição de um feto, perda do peso, não se comunicar e nem se movimentar mais. Na fase terminal as dependências são maiores, assumindo a posição de um feto, ficar restrito ao leito e infecções contínuas.

Não é incomum acharem a pessoa louca, colocarem em um asilo, esquecerem que ela existe, afinal dá trabalho. É difícil entender como que as coisas mais simples, mais fáceis foram perdidas com o tempo. É como se voltasse ao processo da infância, bem aos poucos. Como se sua gaveta de coisas, de ideias e histórias aos poucos fossem esvaziando. Quando se é criança, tudo você acaba inserindo na sua gaveta mágica de descobertas. Desde o brinquedo que você mais gosta, seus melhores amiguinhos, o primeiro beijo, as datas de aniversários, as alegrias, os melhores momentos de sua história. E aos poucos, tudo que você encheu a vida inteira, agora está esvaziando. A máquina começa a falhar, pifar, parando bem devagar, se perder no vazio do tempo.

“Minha mãe, após minha avó ser diagnosticada, sempre cuidou dela. Quando a situação dela foi piorando aos poucos, teve que anular um pouco sua vida, deixar o grupo de terceira idade, suas amigas e parar de sair de casa com maior freqüência. Viveu uma prisão dentro da própria casa. Minha avó fazia as coisas erradas, por falta de lucidez já, e minha mãe não parava de chamar a atenção. E não adianta você falar que não adianta chamar atenção”, completa Sinhor.

Para Wagner Cássio Beltran a experiência não foi diferente. “Meu sogro foi definhando aos poucos e vi minha esposa desconsolada tendo todo o cuidado com ele, como se não acreditasse naquilo tudo. Ela cuidou dele até o fim e mesmo sabendo foi sofrido, a morte dele abalou ela demais.”

Outro grande problema é a família toda fazer parte. “Teve uma vez que meu sogro não queria tomar banho, eu tive que ir com ele até o banheiro tirar a minha roupa e mostrar pra ele que eu estava tomando banho e que ele precisava também. Meu cunhado sempre falou que ele não conseguia lidar com isso. Eu que não sou filho lidei, então tive que fazer ele entrar no banheiro e obrigá-lo a fazer a parte dele também com o seu pai”, diz Beltran.

Como qualquer outra doença que requer cuidados específicos, o Alzheimer acaba deixando os cuidadores reclusos dentro do próprio lar. Mesmo nos primeiros estágios da doença, deixar o doente em casa sozinho pode ser considerado como “Abandono de incapaz”, que faz parte do código penal brasileiro, artigo 133. A punição pode chegar de 6 meses a 3 anos de detenção ao responsável. Se resultar na morte, a pena de reclusão pode chegar até 12 anos.

Ao ver Dona Flor, hoje com 83 anos de idade e há cerca de 10 anos diagnosticada com o Mal de Alzheimer, fazendo um comparativo com toda sua história, não parece a mesma pessoa, ou avó, que conheci cuidando do marido com depressão, criando cinco filhos, trabalhadora, disposta, viajando o país inteiro com as amigas, de pernas fortes, auxiliando nos cuidados de pelo menos meia dúzia de bisnetos, e agora embebida pela demência, lhe tolhendo os pontos fortes do seu organismo vivo. Seu passado hoje é mais presente que o próprio presente. A mistura de lembranças da época da meninice com a velhice é cada vez mais frequente. Os mortos do passado ressurgiram, enquanto os vivos do futuro morreram.

No livro infantil “Minha avó tem Alzheimer” de Dagmar H. Mueller e Verena Balhaus, a personagem Paula confessa no final da história: “Às vezes acho muito chato que as pessoas tenham tão pouco tempo para fazer as coisas. Pois, de outro modo, talvez fossem menos impacientes com gente como minha avó, que precisa de cinco minutos para trocar cada peça de roupa, a quem é necessário explicar toda vez como funciona a cafeteira, e que não consegue lembrar o que foi dito cinco minutos atrás”.

Apesar de ser uma doença que atinge os idosos, o Mal de Alzheimer pode também ter início precoce em pessoas de 45 anos, por exemplo, o que, segundo pesquisas tem mostrado ser mais agressivo do que quando surge em pessoas de maior idade.

Para amenizar, os familiares procuram soluções na fé, nas crenças, na credibilidade de que o acaso não existe. Podemos pesquisar algo na doutrina, mas algo contundente mesmo até então não achei pra poder inserir nesta matéria. O que existe é o que chamamos de achismos, de ideias, de suposições. Mas sabemos que as coisas só acontecem porque tem de acontecer. As provas ou expiações servem tanto para quem sente a doença tomar conta do seu vaso físico como para os familiares ao redor. Quem cuida e quem é cuidado tem na vida uma prova maior. Quem convive, faz parte ou está inserido na vida de uma pessoa diagnosticada com o Alzheimer, pode ter a grande oportunidade de praticar a caridade, o amor ao próximo, praticar a paciência e ser um grande doador de vida e esperança.

Não esqueçamos que uma das ideias mais importantes do Espiritismo é a Lei de Causa e Efeito, onde toda ação gera uma reação. Nossa vida presente é reflexo do que temos sido até hoje, inclusive de nossas vivências passadas. É uma lei natural, que com certeza tem que ser inserido os problemas mentais, seja os que vêm na nascença até os que são adquiridos no decorrer da vida.

Importante também é lembrarmos que as oportunidades não batem na porta de todos. Mas para o bem, há oportunidade de se fazer todos os dias. Antes tentar, do que dormir com a consciência pesando sobre o travesseiro. Sabendo que não há injustiça alguma vinda do céu, mas sim, devemos encarar as dificuldades como oportunidade de progresso.

Fala MEU! Edição 85, ano 2012

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