Certificação espírita

Autor: Rogério Miguez

O Movimento Espírita, que não pode jamais ser confundido com a Doutrina Espírita, em razão de seus adeptos se apresentarem com diversas bagagens de entendimento sobre as questões do cotidiano, incluindo variadas experiências seculares hauridas em credos distintos ao longo de nossa História, imagina, vez por outra, que deveríamos trazer para o seio das instituições espíritas costumes, hábitos e propostas variadas, como se a prática espírita devesse incorporar todas as tendências e modismos criados em uma sociedades volúvel e inconstante.

O leque destas inovações é variadíssimo: apometria, cromoterapia, casamentos espíritas com padrinhos e direito à benção de alianças, supostos trabalhos médicos com promessas milagreiras, distribuição de pomadas mágicas com ampla gama de utilizações, incluindo-as como preparativo para cirurgias, psicoterapia reencarnacionista, sem nos esquecermos das agremiações que colocam, em seus salões, imagens e estátuas de certos líderes religiosos. E assim caminha a humanidade espírita: a cada novidade surge logo um adepto da Doutrina propondo modernizar a Instituição, incorporando a prática da recém-surgida proposta, tornando-a, supõem eles, mais conforme aos surpreendentes avanços tecnológicos e científicos do século XXI: É o Espiritismo à moda da casa grassando em acintoso detrimento do conteúdo codificado pelo Mestre Lionês.1

Além de todas estas distorções, vez por outra surge o debate sobre a validade de emissão de certificados a participantes, após terem atendido e concluído cursos espíritas ministrados no âmbito das instituições.

Argumenta-se que este documento poderia ser utilizado quando o concludente do curso, por exemplo, mudasse de local de moradia e precisasse comprovar a sua capacitação, ingressando, de imediato, nas lides espíritas da nova Instituição. Afinal, não se pode perder tempo refazendo programas de estudos já concluídos, porquanto, uma vez realizado o curso, este seria válido vida afora…

Além disso, poderia servir de incentivo aos possíveis interessados, pois teriam algo material em mãos, um comprovante de que o antes novato e aprendiz possui agora os requisitos teóricos e práticos para bem servir à causa espírita, com conhecimento e experiência necessários ao atingimento dos resultados supostamente esperados.

Entretanto, poderíamos alinhar alguns inconvenientes na implantação generalizada desta prática no Movimento Espírita:

1. Imaginemos que a programação de estudos espíritas, não importa a área de atuação e objetivo, foi ministrada por equipe ou indivíduo com aquela conhecida boa vontade, característica importantíssima para qualquer atividade, mas, não raro e infelizmente, sem o imprescindível fundamento doutrinário. O que teria sido ensinado? O que o certificado comprovaria? A frequência pura e simples às aulas!? Será que no certificado constariam as aulas perdidas, mas plenamente justificadas pelo participante e aceitas pelo instrutor? Para exemplificar esta delicada questão, conta-se que certo organizador de estudo espírita defendia abertamente a homofobia, durante as aulas, fundamentado nos textos bíblicos! Há cursos organizados sob a égide espírita em que o uso de armas é defendido sem rodeios, visando promover a segurança dos desavisados!

2. Se a moda pega, em breve poderíamos assistir ao nascimento, dentro das lides espíritas, de uma velada competição para se saber qual seria o certificado mais  procurado, aquele que indicaria a excelência do trabalhador, pois foi ministrado por esta e não por  aquela Instituição, por este e não por aquele instrutor. Haveria certificados AAA e entre outros, não tão bem cotados no mercado. E mais, quem faria  a avaliação ou a certificação dos certificados? Talvez, surgisse a ideia de o trabalhador criar o seu Currículo lattes, facilitando enormemente o trânsito do lidador espírita dentro do Movimento nacional.

3. A certificação poderia ser o ponta pé inicial para transformar as instituições espíritas em escolas formais, de modo que teríamos, com o tempo, escolas de nível iniciante, intermediário, superior e de pós-graduação; trabalhadores seniores seriam considerados livres-docentes, ou seja, toda a estrutura do sistema de ensino acadêmico se implantaria. Este, contudo, não é de modo algum o objetivo de uma Casa Espírita.

4. Imaginar que por meio de um certificado estamos incentivando o neófito a estudar, representa outro equívoco, semelhante ao trabalhador que precisa necessariamente de elogios para se sentir reconhecido e bem consigo mesmo e com os outros. O interesse pelos estudos deve ser natural, sem promessas, recompensas ou artifícios; o amor pelo estudo e pelos cursos de ensino espírita deve ser espontâneo, visando apenas o progresso moral e intelectual do estudante, e nada mais. Se, após a conclusão do curso, o frequentador se interessar em atuar junto à Instituição, já é uma outra etapa. Um destes artifícios, aliás lamentável, é incentivar o interessado em conhecer o Espiritismo, particularmente a área mediúnica, alegando que se ele frequentar com aproveitamento uma programação de estudos e práticas sobre mediunidade, descobrirá, com absoluta certeza, qual é o seu ainda não revelado dom mediúnico…

5. Reflitamos, igualmente, nas agremiações muito simples do interior do país, dotadas de estruturas físicas rudimentares, mal possuindo livros em suas bibliotecas, se é que estas existem. Nesta hora, alguém poderia argumentar que quase todo mundo possui um telefone celular, de forma que tais estudos poderiam ser realizados com o uso desta ferramenta. Contudo, lembramos que estas maravilhas da tecnologia estão sendo proibidas nas salas de aulas nestes chamados tempos modernos, sem falar que em regiões muito simples nem todas as pessoas possuem este dispositivo tecnológico, que hipnotiza tanta gente. Pergunta-se: Como os trabalhadores destas instituições se apresentariam em outros centros, para trabalhar, sem os imprescindíveis certificados? Muitos destes interessados possuem requisitos de trabalho melhores do que os dos atuantes nos grandes centros: humildade, perseverança, disciplina, pois aprenderam, com as dificuldades do dia a dia, a ler e estudar os livros de Allan Kardec, mesmo sem o uso de recursos didáticos modernos, ou das variadas formas de se apresentar a Doutrina. Aliás, no passado, a formação espírita era feita estudando-se cada obra básica, costume este que está se perdendo à medida que usamos, continuadamente, material resumido das obras da Codificação, como se pudessem substituir a fonte original dos ensinos. Frise-se que não estamos, absolutamente, negando a importância dos estudos sistematizados da Doutrina Espírita em nossas instituições espíritas, cujo valor é incontestável e devem ser estimulados sempre, mas apenas nos voltando contra a certificação conferida aos seus participantes ao final dos cursos realizados, pelas razões expostas ao longo deste artigo. 

Quem já atua por algum tempo no meio espírita sabe como lidar com os novatos que chegam na Instituição, vindos de outras agremiações, cidades, Estados, estejam munidos ou não dos tais certificados. Nesses casos, sempre que alguém aparece com experiência anterior, procedente de outros centros, e se diz pronto para o trabalho, é preciso observar o postulante para nos certificarmos do que ele sabe, de fato, fazer, e se bem conhece o que diz conhecer, possua ou não documento de certificação a lhe atestar suposta proficiência nesta ou naquela área da seara espírita.

O depoimento daquele que busca trabalho, em princípio, é a verdade; disso não há o que duvidar, nem questionar, afinal somos espíritas, sem necessidade de nenhum documento para comprovar o que afirmamos. Mesmo assim, a prudência sugere que, com papel ou sem papel, é preciso avaliar-se o trabalhador antes de aceitá-lo na equipe de qualquer atividade, seja na área de ensino – exposições e estudos, para os públicos infantil, juvenil ou adulto, seja na parte prática – mediunidade e passes magnéticos. Isto sem falar na área de atendimento fraterno, um setor delicadíssimo, onde o participante não pode ser formado simplesmente por ter participado de algumas aulas ministradas num final de semana, o que é uma temeridade. Exige-se, para esta tarefa, vários anos de experiências de vida e participação em diferentes áreas de atuação espírita, e isso, por largo tempo. Afinal, a Instituição está apresentando uma pessoa que suspostamente tem capacidade para avaliar o que o consulente lhe informa e, em muitos casos, são confissões que não se fazem nem para os pais. Nesta particular área do atendimento fraterno, é um verdadeiro crime moral permitir trabalhadores recém-chegados no Espiritismo, com pouca experiência no setor, apenas por apresentarem boa vontade para o trabalho.

São estas questões que justificam a advertência profética de Léon Denis, quando afirmou, em 1903: O Espiritismo será o que dele fizerem os homens.2

A propósito do tema, retiramos de confiável obra o seguinte texto:

[…] Entretanto, em uma Sociedade Espírita, a tarefa primacial é a de iluminação da consciência ante a realidade da vida, seus fins, sua melhor maneira de agir, preparando os indivíduos para a libertação do jugo da ignorância, a grande geradora de males incontáveis.3

Ao promoverem cursos em suas dependências, não é objetivo das casas espíritas produzir trabalhadores em massa, visando ocupar cargos na própria Instituição, mas sim formar bons cidadãos, que saberão como se portar positivamente em sociedade, os quais disciplinarão suas mentes de modo a não adoecerem com tanta facilidade em função de seus desregramentos morais e éticos.

Vejam, queridos leitores, como estamos nos distanciando da proposta espírita original de educar o Espírito, para que ele, educado, eduque e dê os exemplos de vida que poderão arrastar multidões para melhor conhecer a insuperável proposta espírita. E só o  conhecimento e a vivência dos postulados contidos e nas obras básicas do Espiritismo à luz do Evangelho de Jesus serão capazes de fazer que a Humanidade se renove, de fato, acelerando o processo de transformação moral que já se faz sentir, inexoravelmente, em várias regiões do nosso planeta e que nos levarão à era tão sonhada de regeneração.

Referências

1 VINÍCIUS. O Mestre na Educação. 10. ed. Brasília, DF: FEB, 2025. cap. 25 – Clama sem cessar.

2 DENIS, Léon. No invisível. Tradução de Leopoldo Cirne. 26. ed. Brasília, DF: FEB, 2025. Introdução.

3 FRANCO, Divaldo P. Trilhas da Libertação. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 10. ed. Brasília, DF: FEB, 2024. cap. 6 – O desafio. p. 55.

IMIGRANTE, SIMINVISÍVEL, NÃO