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O Antigo Testamento foi revogado por Jesus?

Autor: Paulo da Silva Neto Sobrinho

Neste texto estudaremos algumas passagens do Evangelho buscando compreender as palavras de Jesus, visando deixar o mais claro possível o que Ele pensava, de modo que também você, leitor, tenha elementos suficientes para tirar sua própria conclusão.

Mateus 5,17-18: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: ‘Até que o céu e a terra passem, nem um ‘i’ ou um ‘til’ jamais passará da lei, até que tudo se cumpra’.”

Essa é a passagem em que se apoiam para concluir que Jesus estaria confirmando toda a Bíblia. Mas, com essa fala, Ele estava apenas querendo dizer que devia cumprir-se tudo que Dele está escrito na Lei e nos profetas, dizendo que nem um “i” ou nem um “til” do que ali consta deixaria de ser cumprido; isso ficará bem claro no desenrolar deste estudo.

Lucas 10,25-28: “E eis que certo homem, intérprete da lei, se levantou com intuito de pôr Jesus em provas, e disse-lhe: ‘Mestre, que farei para herdar a vida eterna?’ Então Jesus lhe perguntou: ‘Que está escrito na lei? Como interpretas?’ A isto ele respondeu: ‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Então Jesus lhe disse: ‘Respondeste corretamente; faze isto, e viverás’.”

Se Jesus, quando disse a respeito da Lei (Mateus 5,17-18), estivesse mesmo se referindo a todo o pentateuco mosaico, estaria em contradição com esta passagem, pois considerou como correta a resposta do intérprete, que somente disse que está escrito: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ora, na legislação de Moisés existem muitas outras coisas para se cumprirem além dessas, que, segundo os exegetas, são, ao todo, 613 normas.

Lucas 16,16-17: “A lei e os profetas vigoraram até João; desde esse tempo vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se esforça por entrar nele. E é mais fácil passar o céu e a terra, do que cair um til sequer da lei”.

Se a Lei e os profetas vigoraram até João é porque depois de João está vigorando algo diferente, uma nova legislação. Ela não é nada mais nada menos que o Evangelho, ou seja, o Novo Testamento. A questão de “cair um til sequer da lei” se refere a tudo que há nela com relação às profecias sobre a vinda de Jesus. Assim, os acontecimentos que ocorreriam com Ele é que seriam cumpridos e não, como querem alguns, que todas as ordenações contidas lá, devam ser rigorosamente seguidas. Até mesmo porque, como iremos ver mais adiante, especificamente algumas delas Ele as alterou profundamente, como é o caso, por exemplo, da questão do “olho por olho”.

Lucas 24,25-27: “Ele então lhes disse: ‘Ó homens sem inteligência, como é lento o vosso coração para crer no que os profetas anunciaram! Não era preciso que Cristo sofresse essas coisas para entrar na glória?’ E partindo de Moisés começou a percorrer todos os profetas, explicando em todas as Escrituras, o que dizia respeito a ele mesmo.”

Após ressuscitar, Jesus caminha com dois discípulos que estavam indo para a aldeia de Emaús, e lhes explica o que constava nas Escrituras a respeito dele. Iniciando por Moisés, percorre todos os profetas, ou seja, esclarece-lhes somente o que era importante e que deveria ser cumprido nesse contexto. Portanto, confirma o que estamos dizendo desde o início, quer dizer, que Ele não veio revogar ou abolir as profecias a Seu respeito. Se tudo nas Escrituras fosse mesmo importante, não iria restringir-se a só explicar o que nelas diziam sobre Ele. E para provar que não estamos distorcendo os fatos, vejamos a passagem seguinte:

Lucas 24,44-45: “A seguir Jesus lhes disse: ‘São estas palavras que eu vos falei, estando ainda convosco, que importava se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’. Então lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras.” 

Veja você, caro leitor, que é perfeitamente claro o que Jesus quis dizer quanto ao cumprimento das Escrituras. Não era, portanto, tudo quanto existia nelas, mas somente importava que se cumprisse tudo o que dele estava escrito nela, ou seja, sua origem da casa de Davi, sua missão, todo o seu padecimento que culminou com sua morte na cruz e sua gloriosa ressurreição. Assim, não há como entender de outra forma, a não ser que as palavras de Jesus não sirvam para nada ou que as queiramos distorcer.

João 1,17: “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.”

Aqui temos uma nítida demonstração de que a Lei de Moisés não é de suma importância para os cristãos, já que a VERDADE veio por Jesus Cristo, e é a Ele que nós procuramos seguir, e não a Moisés. Não poderemos dizer que a Lei de Moisés não teve o seu valor; é claro que teve; entretanto, como diz Jesus, somente até João (Lucas 16,16). Isso porque, para um povo atrasado, ela foi um fator de desenvolvimento.

João 1,45: “Filipe encontrou Natanael e lhe falou: ‘Achamos aquele de quem escreveram Moisés na Lei e os Profetas, Jesus, filho de José de Nazaré’,” 

Passagem que vem confirmar que as profecias a respeito do Messias estavam se cumprindo no momento em que Jesus inicia a sua vida pública. E era justamente nisso que os hebreus esperavam, ansiosamente, que se cumprissem as Escrituras.

João 7,23: “Se um homem recebe a circuncisão no sábado, para cumprir a Lei de Moisés, por que vos irritais contra mim porque curei totalmente um homem no sábado?” 

João 8,5-7: “Na Lei, Moisés nos manda apedrejar as adúlteras; mas tu o que dizes? […] Jesus […] lhes disse: ‘Aquele de vós que estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra’.” 

Se, realmente, as leis que Moisés passou ao povo hebreu fossem todas provenientes do Criador, por que nestas duas passagens não se diz: cumprir a Lei de Deus e Na lei, Deus nos manda, respectivamente? Porque eram leis de Moisés e não provenientes da divindade. Tanto é que, na questão da adúltera, Jesus não disse ao povo para cumprir a Lei; antes, ao contrário, revoga-a, inclusive, demonstrando uma inteligência que Lhe era peculiar. Deus também nunca diria: “Não cobiçar a mulher do próximo”, mandamento que realça ser, obviamente, um produto da cultura de uma sociedade machista daquela época; nada mais que isso, sendo, portanto, da forma que está expressa, lei dos homens e não de Deus.

Paulo, em carta aos romanos, disse-lhes o seguinte:

Romanos 7,5: “Enquanto viviam segundo a carne, as paixões pecaminosas, estimuladas pela Lei, produziam fruto para a morte em nossos membros.” (grifo nosso)

Podemos deduzir desta passagem que a Lei estimulava paixões pecaminosas? Se for isto mesmo, é porque ela, a Lei, não era a VERDADE, que veio somente com Jesus. E no versículo seguinte continua:

Romanos 7,6: “Mas agora, livres da Lei, estamos mortos para aquilo que nos conservava prisioneiros, de sorte, que podemos servir a Deus conforme um espírito novo e não segundo a letra antiga.” (grifo nosso)

Livres da Lei, ou seja, que não estamos mais submissos a ela. Não é claro isso? Se podemos servir a Deus conforme um espírito novo, qual seja, os ensinamentos de Jesus, por que ficar ainda apegados a Moisés (letra antiga)? O Antigo Testamento foi revogado, ou ainda queremos permanecer na dúvida?

Mateus 5,19-20: “Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.”

Nosso quadro é: Jesus na passagem evangélica do Sermão do Monte, em que ele inicia dizendo os novos ensinamentos que deveremos cumprir. São as verdades que Ele passa a todos nós como roteiro de vida. São apenas os mandamentos que disse para que não os violássemos. A partir dali, também, é que altera e revoga a legislação de Moisés; confirmamos isso com as passagens relativas ao capítulo 5 de Mateus, que serão colocadas logo a seguir.

Mateus 5,21-22: “Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento’. Eu, porém, vos digo que todo aquele que (sem motivo) se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo.”

Moisés: Não matarás. Jesus: que não devemos nem mesmo irar contra ou insultar ao nosso irmão.

Mateus 5,27-28: “Ouvistes que foi dito: ‘Não adulterarás’. Eu, porém, vos digo: Qualquer um que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração já adulterou com ela.”

Moisés: Não adulterarás. Jesus: só o fato de olhar para uma mulher com intenção impura, já cometemos adultério.

Mateus 5,31-32: “Também foi dito: ‘Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio’. Eu, porém, vos digo: Qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério.”

Moisés: poder-se-ia repudiar a mulher. Jesus: se a repudiares estás expondo a mulher ao adultério.

Mateus 5,33-37: “Também ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos’. Eu, porém, vos digo: De modo algum jureis: Nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do grande Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno.”

Moisés: Não jurarás falso. Jesus: De modo algum jureis.

Mt 5,38-42: “Ouvistes que foi dito: ‘Olho por olho, dente por dente’. Eu, porém, vos digo: Não resistais ao perverso; mas a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede, e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes.”

Moisés: Olho por olho, dente por dente. Jesus: Quem te ferir na face direita, volta-lhe também a outra.

Mateus 5,43-48: “Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.”

Moisés: Odiarás o teu inimigo. Jesus: Amai os vossos inimigos.

Encontramos apoio ao nosso pensamento no exegeta Bart D. Ehrman, que em sua obra O que Jesus disse? O que Jesus não disse?; quem mudou a Bíblia e por quê, assim se expressou:

Contudo, logo depois, os cristãos passaram a aceitar outros escritos ao lado das Escrituras judaicas. Essa aceitação pode ter tido origem no ensino autorizado do próprio Jesus, à medida que seus seguidores tomaram a sua interpretação das escrituras como dotada da mesma autoridade conferida às palavras das próprias escrituras. Jesus pode ter estimulado essa compreensão pelo modo como parafraseava alguns de seus ensinamentos. No Sermão da Montanha, por exemplo, vê-se Jesus expondo leis dadas por Deus a Moisés e depois dando sua própria e mais radical interpretação delas, indicando que a sua interpretação é a autorizada. (EHRMAN, 2006, p. 40-41).

Reputamos a opinião de Ehrman como de grande importância, pois ele é considerado o maior especialista em Novo Testamento da atualidade.

Objetivamente, quanto à questão da revogação do Antigo Testamento, vejamos o que encontramos de apoio a essa tese no Novo Testamento:

1 Coríntios 15,2: “É pelo evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem de modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão.”

Efésios 1,13: “Em Cristo, também vocês ouviram a palavra da verdade, o Evangelho que os salva.”

Paulo deixa claro que é pelo Evangelho que seremos salvos; em outras palavras, ele não aceita o Antigo Testamento como algo com que possamos nos salvar.

Hebreus 7,18-19: “Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por causa de sua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou cousa alguma) e, por outro lado, se introduz esperança superior, pela qual nós chegamos a Deus. E, visto que não é sem prestar juramento (porque aqueles, sem juramento, são feitos sacerdotes, mas este, com juramento, por aquele que lhe disse: O Senhor jurou e não se arrependerá; Tu és sacerdote para sempre); por isso mesmo Jesus se tem tornado fiador de superior aliança.”

Hebreus 8,6-8.13: “Agora, com efeito, obteve Jesus ministério tanto mais excelente, quanto é ele também mediador de superior aliança instituída com base em superiores promessas. Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido sem defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar para segunda. E, de fato, repreendendo-os, diz: Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Quando ele diz Nova, torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido, está prestes a desaparecer.”

Hebreus 10,9: “[…] Desse modo, Cristo suprime o primeiro culto para estabelecer o segundo”.

Se até aqui ainda poderia existir alguma pequena sombra de dúvida, agora foi definitivamente dissipada por estas narrativas da carta aos Hebreus. Poderíamos até dizer: “quem tem ouvidos que ouça”, mas diremos quem tem olhos veja: a aliança anterior é fraca, inútil e com defeito, enquanto que a nova é superior a ela. Quanto ao “está prestes a desaparecer”, só não desapareceu ainda por causa da insistência de alguns que querem, a todo custo, manter viva a legislação de Moisés contida no Antigo Testamento. Repetindo: Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido sem defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar para segunda.

Corroboramos nossa ideia com Ehrman:

Já mencionei que esta é a visão apresentada na epístola dos Hebreus, do Novo Testamento, livro que tenta mostrar que a religião baseada em Jesus é superior à religião do judaísmo, em todos os sentidos. Para o autor de Hebreus, Jesus é superior a Moisés, que deu a Lei aos judeus (Hb 3); ele é superior a Josué, que conquistou a terra prometida (Hb 3); ele é superior aos sacerdotes que oferecem sacrifícios no templo (Hb 4-5); e, o mais marcante, ele é superior aos próprios sacrifícios (Hb 9-10). […]. (ERMAN, 2008, p. 78)

Clara, então, fica a questão de Jesus ser superior a Moisés.

Marcos 2,18-22: “Como os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando, foram lhe perguntar: ‘Por que é que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus jejuam, e os teus não?’ Jesus lhes respondeu: ‘Por acaso ficaria bem que os convidados para um casamento fizessem jejum, enquanto o esposo está com eles? Enquanto está, não convém. Mas virá um tempo em que o esposo lhes será tirado. Então sim, eles vão jejuar. Ninguém costura um remendo de pano novo em roupa velha. Do contrário o remendo novo, pelo fato de encolher, estraga a roupa velha e o rasgão fica pior. Ninguém põe vinho novo em velhos recipientes de couro. Caso contrário, o vinho arrebentaria os recipientes. Ficariam perdidos os recipientes e também o vinho. Para vinho novo, recipientes novos!’.”

Seria o mesmo que Jesus dizer: Se vocês ficarem apegados aos ensinamentos de Moisés, não conseguirão suportar nem compreender o que agora vos trago. Onde se falava sobre os jejuns? Não é no Velho Testamento, que, tanto os fariseus e quanto os discípulos de João Batista, tiravam o que seguiam? Lembremo-nos de que “a Lei e os Profetas vigoraram até João” (Lucas 16,16). Assim, não fica claro sua revogação por Jesus? Só não o é para os que ainda insistem em seguir Moisés. Mais claro fica quando tomamos da nota de rodapé constante do Novo Testamento, Edições Loyola, o seguinte: “Tanto o pano novo como o vinho novo são símbolos duma nova era (cf. At 10,11; Hbr 1,11; Gên 49,11-12); os cristãos devem estar animados dum espírito novo, incompatível com antigas prescrições do judaísmo já ultrapassadas” (p. 57).

Há um episódio na vida de Jesus que nos levou a formar uma forte convicção que seus ensinamentos eram superiores aos de Moisés. É a passagem em que João narra, o que se supõe como sendo, o primeiro milagre de Jesus. Apesar de termos refletido muito sobre ela, ainda não tínhamos nenhuma explicação que justificasse a atitude de Jesus em transformar água em vinho, para embebedar os convidados da festa de que participava.

Vejamos o episódio:

João 2,1-11: “No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e a mãe de Jesus estava aí. Jesus também tinha sido convidado para essa festa de casamento, junto com seus discípulos. Faltou vinho e a mãe de Jesus lhe disse: ‘Eles não têm mais vinho!’ Jesus respondeu: ‘Mulher, que existe entre nós? Minha hora ainda não chegou’. A mãe de Jesus disse aos que estavam servindo: ‘Façam o que ele mandar’. Havia aí seis potes de pedra de uns cem litros cada um, que serviam para os ritos de purificação dos judeus. Jesus disse aos que serviam: ‘Encham de água esses potes’. Eles encheram os potes até a boca. Depois Jesus disse: ‘Agora tirem e levem ao mestre-sala’. Então levaram ao mestre-sala. Este provou a água transformada em vinho, sem saber de onde vinha. Os que serviam estavam sabendo, pois foram eles que tiraram a água. Então o mestre-sala chamou o noivo e disse: ‘Todos servem primeiro o vinho bom e, quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até agora’. Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou seus sinais. Ele manifestou a sua glória, e seus discípulos acreditaram nele.”

Mas qual é o verdadeiro sentido dessa passagem? Nós o encontraremos naquilo que a pessoa encarregada da festa disse para o noivo: “Todos servem primeiro o vinho bom e, quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até agora”. Considerando que, com esse primeiro ato público, Jesus inicia a sua missão, podemos dizer que o “vinho bom guardado até agora” são os ensinamentos de Jesus, superiores aos recebidos anteriormente, por meio de Moisés que seria simbolicamente o vinho de pior qualidade, até mesmo porque, e sem querer desmerecê-los, a humanidade daquela época não estava preparada para receber vinho (ensinamento) de melhor qualidade, se assim podemos nos expressar.

Tudo o que já dissemos anteriormente sobre os ensinos de Jesus, vale para corroborar essa nossa opinião. Mas podemos ainda trazer como apoio a isso: “Em comparação com esta imensa glória, o esplendor do ministério da antiga aliança já não é mais nada” (2 Coríntios 3,10), e “Dessa maneira é que se dá a ab-rogação do regulamento anterior em virtude de sua fraqueza e inutilidade – a Lei, na verdade, nada levou à perfeição – e foi introduzida uma esperança melhor pela qual nos aproximamos de Deus” (Hebreus 7,18-19).

Concluímos que Jesus não se restringiu a só revogar os rituais e sacrifícios como alguns pensam, para nós, foi muito mais além disso. Comprovamos também que não distorcemos as narrativas da Bíblia à nossa conveniência, de que tanto nos acusam. São elas, exatamente, que nos dão uma base sólida para afirmar com absoluta certeza que:

  1. O cumprimento da lei e dos profetas a que Jesus se refere no Evangelho é apenas com relação às profecias contidas nas Escrituras sobre Ele mesmo;
  2. Que somente tem que ser cumprido da Lei: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo.
  3. Que nunca disse para seguirmos toda a Lei, aqui entendida como todo o Pentateuco.

É muito comum recorrerem aos apologistas do cristianismo primitivo para justificar esse ou aquele ponto, entretanto, quando é algo contrário à crença vigente passam por cima, como se não tivessem visto. Vejamos, por exemplo, o que encontramos em Justino de Roma.

A opinião de Justino de Roma (c. 100-165 d.C.), tido como o melhor apologista do século II, é bem clara no debate que manteve com um sábio judeu, Trifão, que alguns estudiosos identificam como sendo o célebre rabino Tarfão, morto em 155, uma vez que Trifão seria a forma grega do hebraico Tarfão. (JUSTINO, 1995, p. 107). Desse debate, intitulado Diálogo com Trifão, que durou dois dias, transcrevemos:

[…] Contudo, nós não a [confiança] depositamos por meio de Moisés ou da Lei, pois nesse caso estaríamos fazendo o mesmo que vós. Com efeito, ó Trifão, eu li que deveria vir uma lei perfeita e uma aliança soberana em relação às outras, que agora devem ser guardadas por todos os homens que desejam a herança de Deus. A Lei dada sobre o monte Horeb já está velha e pertence apenas a vós. A outra, porém, pertence a todos. Uma lei colocada contra outra lei anula a primeira; uma aliança feita posteriormente também deixa sem efeito a primeira. Cristo nos foi dado como lei eterna e definitiva e como aliança fiel, depois da qual não há mais nem lei, nem ordem, nem mandamento. […]. (JUSTINO, 1995, p. 127, grifo nosso)

Mais claro que isso é querer muito; não é mesmo?

Agora, podemos responder ao questionamento inicial: O Antigo Testamento foi revogado por Jesus? Sim; sem nenhuma sombra de dúvida. E é por isso que não nos sentimos na obrigação de cumprir nada do que consta nele, até mesmo para sermos coerentes com o que pensamos e por acreditar nessa fala de Jesus: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (João 14,6). Por que Ele se colocou como sendo o caminho que conduz ao Pai e não a Moisés? É porque somente os seus ensinos é que devem ser seguidos.

Esse é o entendimento a que chegamos. Entretanto, não há como obrigar ninguém a pensar como nós. A única coisa que pedimos é para que as pessoas deixem de se apegar em demasia aos velhos ensinamentos, como se eles fossem verdadeiros. A Terra já não é mais o centro do Universo, visto que o homem, percebendo a ignorância de tal afirmativa, finalmente, aceitou a voz da Ciência. Além de que, muitas coisas não foram mudadas pelas cúpulas religiosas, justamente para que elas conservassem, a todo custo, o domínio que têm sobre o povo e, também, para que pudessem mantê-lo a todo custo. Ainda hoje encontramos as que buscam incutir a validade dos ensinamentos do Antigo Testamento não se dando conta de que “rompestes com Cristo, vós que buscais a justiça na Lei; caístes fora da graça” (Gálatas 5,4). Sabemos que não fazem isso por ignorância, mas por esperteza visando dominar seus “fiéis”, a fim de conseguir e manter o “poder” e o “dinheiro” na base do que podemos chamar de terrorismo religioso.

Referências

Bíblia Anotada. São Paulo: Mundo Cristão, 1994.

Bíblia Sagrada, 68ª ed. São Paulo: Ave-Maria, 1989.

Bíblia Sagrada, 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.

Novo Testamento, LEB. São Paulo: Loyola, 1984.

EHRMAN, B. D. O problema com Deus. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

EHRMAN, B. D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse? Quem mudou a Bíblia e por quê. São Paulo: Prestígio, 2006.

JUSTINO, Mártir, Santo Justino de Roma: I e II apologias: diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995.

O consolador – Especial.

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