O autoperdão e Judas Iscariotes

Autor: Rogério Miguez

A temática do ato de perdoar sempre foi de vivo interesse, porquanto, a partir do momento em que duas ou mais pessoas interagiram, e ao término desta relação puderam perceber, através do uso da razão, que uma das duas – ou mesmo ambas – sofreu algum prejuízo material ou moral, foram obrigadas a pensar sobre como resolver o impasse.

Com o passar do tempo e diante de muitas situações de litígio, surgiu a percepção que uma das partes lesadas poderia relevar o prejuízo sofrido – caso assim decidisse -, liberando o devedor de sua obrigação de devolver ou reparar o que foi subtraído do ofendido, desculpando-o pelo que fez, em vez de cobrar, muitas vezes a qualquer custo, o alegado dano existente. O ato de perdoar uma ação humana se fez a partir de então possível e, eventualmente, tornou-se uma realidade presente em incontáveis desfechos de relacionamentos.

Entretanto, esta sábia providência, tão bem sugerida e explicada pelo Meigo Rabi, possui uma vertente desconhecida de muitos. Trata-se da aplicação do perdão a si mesmo, neste caso, em duas possíveis situações: quando ofendemos e nos sentimos inquietos com o reconhecimento pessoal sobre o que fizemos a outrem, mesmo que tenhamos sido perdoados, e em situações onde não há outra pessoa envolvida, ou seja, identificamos um prejuízo causado a nós mesmos, contudo, ficamos igualmente desgostosos, agora conosco mesmos.

Ora, como se diz que o perdão do ofendido pode libertar o ofensor do incomodo íntimo provocado pelo dano causado em relação ao próximo, podemos ajuizar ser este mecanismo semelhante em relação ao autoperdão, pois este poderá libertar o indivíduo da prisão imposta a si mesmo.

De fato, pode-se até imaginar que a parcela de ofensas cometidas por um Espírito vinculado a um mundo de provas e expiações contra ele próprio – desconsiderando as ofensas ao próximo – deva ser significativa. Basta considerarmos alguns exemplos:

  • Um adicto promete a si mesmo não usar mais drogas, sejam lícitas ou ilícitas. Mantém a promessa por algum tempo, porém, em um momento de fraqueza moral retorna ao vício. Internamente cria um grave conflito de difícil superação, pois foi derrotado por ele mesmo.
  • Um indivíduo afeiçoado à fartas refeições afirma que empenhara todos os esforços para controlar a sua alimentação, pois os exageros lhe têm prejudicado o bom funcionamento do corpo físico, além de, com o ganho de peso perder a sua autoestima. Faz mil juramentos a si mesmo de manter a decisão, contudo, em um momento de conflito provocado por uma desilusão afetiva, cede e retorna ao prejudicial costume.
  • Um sexólatra, diante dos desgostos e da insaciedade experimentados com a prática compulsiva do sexo sem afeição e compromisso, diz um basta para a conduta, prometendo, daquele momento em diante, não mais conduzir-se nesta área puramente motivado pelos instintos. Consegue durante algum tempo manter o compromisso consigo mesmo, entretanto, deixa-se derrotar em um momento particular de avivamento das paixões mais primárias, voltando mais uma vez às práticas inadequadas.
  • Às vezes, um Espírito possuindo em seu caráter e personalidade algumas matrizes pouco éticas ou mesmo hesitantes em relação à aspectos morais, cede a uma tentação e deixa-se corromper, por exemplo, por um ganho financeiro fácil ou outro imerecido bem material qualquer. Quando cai em si, percebe o desatino perpetrado, contudo, nesta hora, é tarde para voltar atrás. Será obrigado a conviver amargurado com o suplício e o remorso de ter consentido com o deslize ético.

Estas, entre outras, são situações em que o Espírito enfrentará acusações e incriminações muitas vezes apenas de si mesmo, sem que ninguém adentre o seu ambiente íntimo para imputar-lhe admoestações. O tribunal se estabelece apenas na mente do próprio infrator e, transtornado pelas suas fraquezas, martirizando-se secretamente em face de suas fragilidades, não admite, neste fórum íntimo, a figura do defensor, apenas da promotoria. Encurralado nesta hora de extremo conflito pessoal, quem poderá defendê-lo de suas duras incriminações, se não apenas ele mesmo!?

Surge, desta forma, a premente necessidade do autoperdão!

Sim, se o Espírito muitas vezes açodado por obsessores, além de si próprio, não encontrar uma saída plausível, permitindo-se respirar, tomar fôlego mais uma vez, para sinceramente, com coragem renovada, ajuizar um novo tentame visando a vencer-se em suas vulnerabilidades, pode ser com facilidade levado ao cometimento do infeliz ato maior em resposta ao seu extremo desespero e desapontamento consigo mesmo: o suicídio.

E não foi este o contundente desfecho provocado pela infeliz conduta de Judas Iscariotes em relação ao Cristo?

O assim dito traidor de Jesus, conforme registram os Evangelhos, após o equivocado ato de indicá-lo aos emissários do Sumo Sacerdote, magoado consigo mesmo, desesperado e a sós, comete o ato final de seu descuido com as condutas éticas e moralizantes, suicidando-se.

O que teria faltado a Judas naquela hora extrema, quando reconheceu o seu engano, percebeu a trama em que se deixou envolver, compreendeu os ardilosos artifícios em que, por conta própria, emaranhou-se? Talvez o autoperdão?

Após ser ajudado por Jesus e Maria a deixar o seu inferno – criado por ele mesmo -, certamente reencarnou algumas vezes, até voltar na figura de Joana d’Arc no século XV, agora na França.[1]

E, conforme relata Humberto de Campos[2], Judas só se sentiu perdoado por ele mesmo, ou seja, concedeu verdadeiramente o autoperdão, quando, como Joana d’Arc, foi traído de forma vil pela Igreja e pelo Rei da França, sendo obrigado a literalmente arder em uma fogueira.

Apenas nesta hora, traído e morto na fogueira, ele se autoperdoou, sentindo-se quites com a justiça eterna e agora em paz consigo mesmo.

Veja-se ainda que, embora perdoado por Jesus, este gesto do Mestre não o isentou das consequências de seu antigo deslize, pois, se assim fosse, seria muito fácil transgredir a Lei de Deus, receber o perdão do ofendido, aproveitar e autoperdoar-se, sem enfrentar as consequências do mal oriundo das atitudes em desalinho com os princípios divinos.

É muito oportuno esclarecer: o autoperdão não é uma panaceia como muitos desavisados o entendem; é uma providência útil para tentar estancar o processo de autopunição, autoflagelação, automartírio, muitas vezes impostos por aqueles que não se desculpam pelos atos impensados praticados, quando houve prejuízo claro para si mesmo, para o próximo, ou para ambos, seja ele qual for.

Não é uma conduta para ser usada continuadamente, sem critérios, sob pena de tornar-se banal, incentivando o indivíduo a autoperdoar-se por qualquer falha, tirando desta providência solene o seu valor intrínseco, transformando-o em ilusória válvula de escape aos nossos muitos deslizes.

Exercitado sem discernimento, o autoperdão acaba por tornar o Espírito permissivo diante de seus muitos “pecados”, sugerindo e mesmo fortalecendo o falso entendimento ao infrator de que ele poderá forrar-se das consequências – expiações e reparações -, muitas vezes graves, provocadas por seus descuidos; bem como deixar de empenhar-se em acertar suas escolhas e condutas futuras, pois caso prejudique o outro mais uma vez, poderá lançar mão da autodesculpa novamente, em um ciclo aparentemente sem fim de autojustificativas.

Os mecanismos de ressarcimento ao mal causado à sociedade e a nós mesmos são variados. O autoperdão é ferramenta utilíssima para que o infrator possa iniciar o seu processo de redenção, todavia, jamais o isentará de expiar e reparar os prejuízos causados, em alguns casos literalmente, ou seja, de modo idêntico ao deslize cometido, se não se dispuser a compensá-los pelo exercício continuado da lei do amor.

Teria sido isto o que aconteceu com Judas Iscariotes!?

Referências                        

1. MIGUEZ, Rogério. Nasce Joana d’Arc, renasce Judas. In: Revista Internacional de Espiritismo, maio de 2018. pp. 178-179.

2. XAVIER, Francisco Cândido. Crônicas de Além-Túmulo. Pelo Espírito Humberto de Campos. 17. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013. cap. 5, Judas Iscariotes.

DICA

spot_img