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Para que perdoar?

Autor: Flávio Bastos do Nascimento

Todos nós, espíritas cristãos, estamos acostumados a ouvir e a falar em perdão. Desde as sábias e imorredouras palavras do Mestre Nazareno, das quais destacamos a oração do Pai Nosso, o tema vem sendo martelado em nossas mentes, mas, curiosamente, fazemos questão de não refletir maduramente sobre ele, a fim de extrair as lições preciosas para as nossas vidas: “Pai, perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido”.

Aqui, na análise deste pequeno trecho, ressalta a excelência da Pedagogia Crística, profunda e sintética, ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, Jesus nos coloca como o ofensor, ou seja, devemos reconhecer que, muitas vezes, somos nós aquele que agride, que fere, que magoa e este é um sinal de humildade e de humanidade, porque nos enxergamos como alguém falível, capaz, como todos os outros, de errar, de se equivocar.

Quanto é mais cômodo nos situarmos na posição de vítimas, impolutas e quase santas, incompreendidas e atacadas pela incompreensão alheia, no entanto, tal atitude não favorece o avanço, ao contrário, faz com que estacionemos, chorosos e preocupados em angariar a compaixão dos que nos cercam. Então, é interessante nos vermos como pessoas que também precisam receber o bálsamo do perdão, o que resta claro na segunda parte da sentença: alcançaremos o perdão na exata medida em que perdoamos as agressões que nos são dirigidas.

Da Judeia dos tempos apostólicos saltamos para a Toscana da Idade Média, onde, nos idos do século 15, encontraremos o discípulo bem-amado, João, envergando o burel surrado dos franciscanos, a cantar, dos campos felizes da região da cidade de Assis, ecoando a Boa Nova: “É perdoando que se é perdoado”.

A bordo dessa maravilhosa máquina do tempo que é a nossa memória, retornamos ao Oriente Médio a tempo de flagrar o mais humano dos Apóstolos (e por isso mesmo escolhido pelo Rabi da Galileia para ser o líder dos demais seguidores) num diálogo íntimo, o qual foi registrado pelo evangelista Mateus, no capítulo 18 de seus registros e preservado para o nosso deleite:

“- Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?

Respondeu Jesus: Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete”.
De lá, avancemos até o século 20, em Pedro Leopoldo, nas Minas Gerais, a tempo de captarmos um trecho do “dedo de prosa” entre Emmanuel e uma senhora que permaneceu anônima, representante das agruras de todos nós, terrícolas, diálogo este intermediado pelo inesquecível e Cândido, Francisco Xavier:

“- Chico, eu vivo com um homem alcoólatra e dois filhos problemáticos, andei fazendo umas contas e percebi que já perdoei mais de 490 vezes…”

Ao que o médium excelente rebateu:

“- O nosso irmão Emmanuel, aqui presente, me pede para lembrar que quando Nosso Senhor disse isso, ele se referia a perdoar 490 vezes cada ofensa”.

Ou seja, é o perdão incondicional, ilimitado; o que Jesus nos convida é a vivenciarmos o perdão, dia após dia, é para adotarmos o perdão como um estilo de vida.

Lembramo-nos aqui do Messias crucificado, mirando a multidão que o cercava e visualizando além, os equivocados perseguidores desencarnados, para afirmar, com toda a nobreza de sua alma: “- Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

Mas o Caminho para a Verdade e a Vida não se deteve aí, o que já seria uma enormidade e retorna do sepulcro, prosseguindo na didática divinal, dialogando, orientando, deixando-se tocar, na demonstração clara de que nos perdoava a deserção, a covardia, a insensatez, por conhecer-nos e saber das nossas fragilidades, apegados às aparências e às falsas sensações de segurança.

Ainda não aprendemos a nos desataviar de tudo isso para prosseguirmos leves, quais crianças, as quais, aliás, têm muito para ensinar a quem tem “olhos de ver!”.

Observemos o quadro de alguns pequenos brincando entre eles: daí a alguns instantes pode ser que surja alguma altercação, alguma disputa em razão de uma boneca, de um carrinho ou de outro brinquedo qualquer. Pode ser até que partam para agressão física, com tapas e empurrões. Se nos contivermos e não interferirmos de maneira enganosa, dali a minutos estarão brincando juntos novamente, como se nada demais tivesse acontecido. O problema é que muitas vezes a nossa intervenção é danosa, quando gritamos, raivosamente, frases do tipo:

“- Não seja bobo(a), não deixe que faça isso com você!”, ou “- Dá nele, ou nela, não apanha, não”.

Para fecharmos com a pérola:

“- Filho meu não leva desaforo para casa!”. Pior é que a criaturinha pode introjetar isso e, de futuro, tornar-se uma pessoa intragável, que por não saber relevar nada, pode acabar levando o desaforo, não para casa, é verdade, mas para o hospital ou para a cadeia!

Mais uma vez, recorremos ao santificado Mateus, agora no capítulo 3 de suas anotações: “- Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos Céus”.

Não basta nos tornarmos crianças em idas e vindas sucessivas, nas diversas reencarnações, se não nos esforçarmos por nos despir do nosso orgulho e nos assemelharmos aos pequenos, na sua delicadeza e na sua brandura, na capacidade que trazem consigo de passar por cima das ofensas e das desavenças.

Perdoar é preciso, é imprescindível até, para quê?

É preciso, urgentemente, que desenvolvamos a capacidade de perdoar, para que não retornemos daqui a alguns anos em reuniões mediúnicas, nesse Brasil imenso, rangendo os dentes e chorando em meio às trevas em que nos mergulhamos, por não havermos sabido nos reconciliar com os nossos adversários, enquanto estávamos a caminho com eles.

Para não nos transformarmos em vingadores, em agentes de cobrança, como se as Leis de Deus precisassem disso!

É necessário perdoar, para não nos tornarmos obsessores!

Quantas perseguições duradouras, atravessando décadas e até mesmo séculos, por falta da habilidade em perdoar?

O perdão faz bem para a saúde: as investigações científicas comprovaram que ataques de raiva causam distúrbios em nosso aparelho circulatório e nos sistemas respiratório e imunológico, os quais podem levar a doenças cardiovasculares como hipertensão, além de enfartos do miocárdio e AVC’s; dentre esses estudos, podemos citar entre muitos outros,  Williams et al. (1991), Chesney et al. (1990) e Van Egeren e Sparrow (1990), Engebretson e Matthews (1992), além de Lahad et al., (1997), Chapud et al., (2002), Barefoot et al., (1995) e Gloria et al., (1996).

Portanto, nem que seja para preservarmos a saúde do corpo, para que possamos prolongar, ao invés de diminuir a estadia na escola planetária, como encarnados, é preciso aprender a perdoar.

Perdoar é característico das almas enobrecidas, temperadas e retemperadas no cadinho de tarefas evolutivas, como fica claro no caso trazido por Hilário Silva em “A vida escreve”:

 “À doente que se queixava em desespero, perguntou a senhora que lhe velava o leito:

— Permite que eu leia para seu reconforto algum pequeno trecho de Allan Kardec?

— Deus me livre! — gritou a enferma, cuspindo-lhe aos pés.

Ainda assim, as mãos abnegadas da companheira continuaram ajeitando-lhe os lençóis…

— Quero água! — exigiu a doente.

A amiga trouxe-lhe água pura e fresca.

De copo às mãos, a enferma, num ímpeto, atirou-lhe todo o líquido à face, vociferando:

— Água imunda!… Como se atreve a tanto? Quero outra!

Paciente e humilde, a senhora enxugou o rosto molhado e, em seguida, trouxe mais água.

— Quero chá.

E o chá surgiu logo.

— Chá malfeito! Chá frio!

O conteúdo da taça foi projetado ao peito da outra, ensopando-lhe a blusa.

— Traga chá quente!

Foi a ordem obedecida.

— Você aceita agora o remédio? — indagou a assistente.

— Que venha depressa.

Ao tomar, contudo, a poção, a dama inconformada agarra a colher e vibra um golpe no braço da amiga. Surge pequeno ferimento, mostrando sangue.

E a enferma cai em crise de lágrimas. Chora, chora e depois diz:

— Anália, se a religião espírita que você abraçou é o que lhe ensina a me suportar com tanta calma, leia o que quiser.

A interpelada sentou-se. Tomou “O Evangelho segundo o Espiritismo” e leu a formosa página intitulada A paciência, no capítulo IX, que começa afirmando: “A dor é uma bênção que Deus envia a seus eleitos…”

Acalmou-se a doente, que acabou aceitando o socorro do passe e o benefício da água fluída.

Conversaram ambas. A enferma, asserenada, ouviu da companheira os planos que arquitetava para o futuro, em benefício dos meninos abandonados à rua.

No dia seguinte, ao despedir-se, a obsidiada em reequilíbrio beijava-lhe as mãos e dava-lhe os primeiros dois contos de réis para começar a grande obra.

Essa enfermeira admirável de carinho e devotamento era Anália Franco, a heroína da seara espírita paulista, que se fez sublime benfeitora das criancinhas desamparadas.”

(Psicografia de Francisco Cândido Xavier.)

Aqueles eram os dias da Lei do Ventre Livre, em que os filhos dos escravos, por não terem mais serventia para os fazendeiros, eram expulsos, e o número de crianças desamparadas, “ao Deus dará”, crescia, dia a dia.

Ante o quadro doloroso, Anália Franco Bastos não se manteve à parte, omissa, como se aquilo não fosse problema dela e foi à luta.

E tanto pelejou, tanto batalhou, em meio a um período turbulento, com a abolição da escravatura, a proclamação da República e uma Guerra de proporções mundiais, numa época em que as mulheres não tinham vez nem voz, que pôde chegar ao término de sua vida missionária, abatida pela Gripe Espanhola, deixando os rastros luminosos de mais de 70 escolas fundadas e de mais de 20 instituições, como asilos, creches e orfanatos!

Que o seu lema possa ser o lema de nossas vidas: “- Não basta conhecer o Bem; é preciso fazê-lo frutificar”.

O consolador – Artigos

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