Autor: Rogério Miguez
A questão da renúncia sempre foi bem exemplificada por missionários em todas as épocas do processo evolutivo da humanidade. Há numerosos registros de pessoas dedicadas inteiramente ao bem, algumas, inclusive, com o sacrifício da própria vida em nome da verdade e do bem comum. Basta recordarmos dos seguidores do Cristo entregues às feras após à vinda de Jesus.
Deixando para trás os pungentes testemunhos daqueles que se deixaram alegremente imolar em nome da fé professada e avançando um pouco mais no tempo, vemos na própria história da criação do Espiritismo marcante exemplo de renúncia na figura do Codificador da Doutrina – Allan Kardec.
O Mestre dedicou-se integralmente à causa de organizar e apresentar o Consolador Prometido à Humanidade, levando uma vida modesta, privado das alegrias de filhos em sua família ao lado da esposa, sacrificando o tempo livre para escrever e trabalhar, ininterruptamente, elaborando ao final de sua missão, cumprida com extremo denodo, vários livros e vasto material escrito aos correspondentes espíritas da época.
Observando o próximo século, registramos a também admirável vida de Francisco Cândido Xavier. Um indivíduo sem títulos universitários, mas que, devido ao seu incansável trabalho na mediunidade de psicografia, legou à posteridade centenas de obras, algumas em prosa e verso, maravilhando os críticos da época. Renunciou aos direitos autorais de todos os seus filhos – os livros -, que poderiam lhe ter proporcionado a aquisição de volumosa fortuna, caso o produto das vendas fosse contabilizado em seu favor. Seguramente um abnegado servidor do Cristo.
Virtude de primeira linha, opõe-se vigorosamente ao egoísmo, erva daninha enraizada de forma profunda nesta humanidade, dificultando, ou mesmo impedindo as grandes demonstrações de fé e renúncia, muito necessárias nestes tempos de grande individualismo e exclusivismo, tão característicos de sociedades competitivas que não valorizam o ser humano, mas, sim, os resultados, principalmente os econômicos.
A renúncia possui a capacidade de controlar os instintos e as sensações mais grosseiras, pois, em seu nome, vidas se entregam aos maiores sacrifícios, sem medir esforços, jamais hesitando, mesmo por um segundo, e, imbuídas deste sentimento de entrega total pelo próximo, obtém resultados positivos destoantes da média, incentivando os mais pusilânimes – quase todos nós – a também tomar as nossas charruas e não olhar mais para trás, no cumprimento de nossas ainda modestas missões.
Combate com vigor, igualmente, a famigerada cobiça, pois o missionário, negando-se a si mesmo em nome do próximo, renuncia aos caprichos e vaidades terrenas, conduzindo-se muitas vezes por uma vida simples e discreta, lembrando sempre de dividir suas efêmeras posses, tal qual fez a viúva ao doar o seu óbolo. Desta forma, serve de vivaz exemplo àqueles Espíritos individualistas, positivos, retrógrados, preconceituosos, ajudando-os a enxergar na vida algo mais do que apenas amealhar recursos, numerário e moedas. Estes altruístas são elementos necessários, principalmente nesta época da grande transição planetária.
É claro, ninguém se faz abnegado sem sacrifício, deve-se renunciar a algo. Alguns abandonam as alegrias do convívio familiar, outros, como Francisco de Assis – o franguinho preto -, deixam para trás as riquezas e o conforto que o dinheiro poderia lhe proporcionar para entregar-se de corpo e alma ao próximo e, igualmente, aos animais.
Contudo, ainda não somos Espíritos elevados, pois temos grande parte do nosso caráter vinculado à terceira ordem dos Espíritos imperfeitos, e, por outro lado, diminuta fração de nosso caráter ligado à segunda ordem dos Espíritos superiores, ou seja, a nossa sombra ainda é bem superior à pouca luz que já irradiamos. Desta forma, como podemos identificar o momento de realizar pequenas renúncias em nossa particular jornada?
Regularmente, entramos em disputas verbais, tantas vezes por quireras, apenas para defender obstinadamente pontos de vista, visando somente a assegurar a vitória de nossas irretocáveis ideias e posições. Quando esta situação se der, podemos, melhor dizendo, devemos renunciar à estas pequenas rixas de palavras, permitindo ao próximo sair vencedor da insignificante querela.
Irmã Rosália em O Evangelho segundo o Espiritismo, registrou: “Grande mérito há, crede-me, em um homem saber calar-se, deixando fale outro mais tolo do que ele.”1
Observamos neste sábio comentário da benfeitora, a identificação de dois tolos, restando saber qual o maior. Desta forma, aprendamos a ceder um tanto em nossas opiniões, preconceitos, hábitos e já exercitaremos pequenas renúncias.
A propósito, os pequenos atos desinteressados, nos preparam para grandes missões, significativas tarefas, pois não creiamos que os missionários tenham sido favorecidos pelo Criador, ou, quem sabe, foram aquinhoados com um dom a mais por pura predileção do Pai de todos. Não, jamais, não há privilegiados na obra de Deus. Eles alcançaram estes patamares elevados de moral e ética atravessando existências de muita disciplina e, igualmente, de incontáveis pequenas renúncias, com certeza, e por largo tempo.
Por outro lado, renunciar ao dom da palavra e ao convívio da sociedade, jurando votos de silêncio e clausura, respectivamente, de nada valem. São ilusórios sacrifícios, não agregando um centésimo na escala evolutiva do recluso. A grande renúncia se faz no seio da sociedade, é neste cadinho purificador de diversidades onde acontecem os testes e as verificações, não nas masmorras de pedra, escuras, frias e sem iluminação características dos claustros. Saber lidar com as criaturas continuadamente, esta a verdadeira prova. Suportarmo-nos, este o grande desafio!
A propósito, a renúncia à família só é reconhecida como um ato verdadeiro de doação em prol do próximo caso seja útil à humanidade, não tenha sido motivada por divergências e antipatias familiares, pois os cuidados com a família representam a primeira missão do Espírito reencarnado.
É oportuno bem entender ser a caridade material uma forma de renúncia, quando o Espírito cede um bem, provisoriamente em sua posse, transferindo este direito de usufruto a outro mais necessitado. É sempre um ato meritório renunciar aos bens materiais em favor do próximo.
Renunciar à ingestão de carne é muito nobre, mas esta conduta não deve inquietar-nos em demasia na atualidade. Embora sabendo que os animais são os nossos primos bem distantes, em função de nossas constituições físicas, a alimentação com proteínas animais ainda se faz necessária, basta recordar:
“A alimentação animal é, com relação ao homem, contrária à lei da Natureza? – Dada a vossa constituição física, a carne alimenta a carne, do contrário o homem perece. A lei de conservação lhe prescreve, como um dever, que mantenha suas forças e sua saúde, para cumprir a lei do trabalho. Ele, pois, tem que se alimentar conforme o reclame a sua organização.”2
Permitindo-nos ser governados, sistematicamente, quando encarnados, pelo famigerado egoísmo, ao desencarnar o Espírito não consegue renunciar aos que ficaram vivos perseguindo-os e criando dificuldades aos que ainda possuem tarefas a realizar. E mais, não se desapegam dos bens materiais, desejando fiscalizar tesouros e moedas que não mais podem manusear. Assim, um bom exercício prévio à chegada da morte, seria se conscientizar de que nada de fato nos pertence, tudo é empréstimo de Deus.
Uma significativa demonstração de renúncia é a previsão divina sobre a vinda de Espíritos superiores, ou mesmo perfeitos, às lides terrenas, quando, muitas vezes, não precisariam mais reencarnar, no que tange os primeiros, e não tem que reencarnar, em relação aos segundos. Estas missões acontecem para ajudar-nos a mais rápido evoluir, pois quando estes luminares por aqui ressurgem enchem nossos corações de esperança em um futuro mais conforme com a justiça e a misericórdia que devem reger nossas condutas.
E, lembrando estas missões de pura abnegação e renúncia, cabe-nos mais uma vez recordar a vinda do Meigo Rabi para render o nosso reconhecimento a este Espírito, que optou por descer dos páramos celestiais de onde nos governa e, humildemente, sujeitou-se a conviver em um ambiente hostil e bruto, que nos caracterizava à época. Ensinou-nos, entre outras grandiosas lições, à: silenciar quando necessário, quando assim agiu diante de Pilatos; expressar bondade irrestrita quando assim agiu por todos os que o procuraram em sua breve jornada, com suas incontáveis mazelas e incertezas; demonstrar paciência irrestrita diante de tantas demonstrações de crueldade e injustiças experimentadas pelos homens; e, finalmente, deixou imorredouros ensinos no campo do perdão, mesmo em seus haustos finais, transfixado ao infame madeiro.
O Mestre veio para servir!
Seja o seu incomparável exemplo combustível para manter acesa a nossa chama moral, de modo a que também possamos renunciar em favor de nossos companheiros de jornada, sempre que as oportunidades se façam presentes.
Referências
1 KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 131. ed. 6. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2015. A caridade material e a caridade moral. cap. XIII, it. 9.
2 Idem. O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. 69. ed. Brasília: FEB, 1987. q. 723.




