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Uma noite esquecida ou a feiticeira Manouza

Revista Espírita, novembro de 1858

Primeiro artigo

Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditada pelo Espírito de Frédéric Soulié.

Prefácio do editor

No correr do ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se fizeram na casa do senhor B…, rua Lamartine, aí atraíram uma sociedade numerosa e escolhida. Os Espíritos que se comunicavam nesse círculo, eram mais ou menos sérios; alguns aí disseram coisas admiráveis de sabedoria, de uma profundidade notável, o que pode se julgar, pelo O Livro dos Espíritos que aí foi começado e feito em sua maior parte. Outras eram menos graves; seu humor jovial se prestava voluntariamente à distração, mas a uma distração de boa companhia que jamais saiu das conveniências. Desse número era Frédéric Soulié, que veio por si mesmo e sem ser convidado, mas cujas visitas inesperadas eram sempre, para a sociedade, um passatempo agradável. Sua conversação era espiritual, fina, mordaz, cheia de oportunidade, e jamais desmentiu o autor de Memórias do Diabo’, de resto jamais se lisonjeou, e quando se lhe dirigiam algumas perguntas um pouco árduas de filosofia, ele confessava francamente sua insuficiência para resolvê-las, dizendo que era ainda muito ligado à matéria, e que ele preferia o alegre ao sério.

O médium que lhe servia de intérprete era a senhorita Caroline B…, uma das filhas do senhor da casa, médium do gênero exclusivamente passivo, não tendo jamais a menor consciência daquilo que escrevia, e podendo rir e conversar à direita ou à esquerda, o que fazia de bom grado, enquanto a sua mão caminhava. O meio mecânico empregado foi, durante muito tempo, a cesta pião, descrita em nossa instrução prática. Mais tarde, o médium serviu-se da psicografia direta.

Perguntar-se-á, sem dúvida, que provas tínhamos que o Espírito que se comunicava era o de Frédéric Soulié, antes que qualquer outro. Não é aqui o caso de tratar a questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que o de Soulié se revelou por mil circunstâncias de detalhes que não podem escapar a uma observação atenta; só uma palavra, um chiste, um fato pessoal narrado, vieram nos confirmar que era bem ele; várias vezes deu sua assinatura que foi confrontada com originais. Um dia pediram que desse seu retrato, e o médium, que não sabe desenhar, que nem jamais o viu, traçou um esboço de uma semelhança marcante.

Ninguém, da reunião, tivera relações com ele em sua vida; por que, pois, viera sem ser chamado? Foi porque se ligou a um dos assistentes, sem jamais consentir em dizer o motivo; ele vinha quando essa pessoa estava presente; entrava com ela e saía com ela; de sorte que, quando ali não estava, ele não mais vinha, e, coisa estranha, era que quando ele lá estava, era muito difícil, senão impossível, haver comunicações com outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo que, por polidez, devia fazer as honras da casa.

Um dia, anunciou que nos daria um romance de sua autoria, e, com efeito, algum tempo depois, começou um relato cujo início muito prometia; o assunto era druídico e a cena se passava na Armorique ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se assustou com a tarefa que empreendeu, porque, é preciso dizê-lo bem, um trabalho assíduo não era seu forte, e ele confessava que se comprazia, com o maior bom grado, na preguiça. Depois de algumas páginas ditadas, aí deixou seu romance, mas anunciou que nos escreveria um outro, que lhe desse menos trabalho: foi então que escreveu o conto do qual começamos a publicação. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos como obra de uma alta importância filosófica, mas como uma curiosa amostra de um trabalho de longo fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário, é que esse relato reprisou-se cinco ou seis vezes diferentes, e frequentemente depois de interrupções de duas a três semanas; ora, a cada reprise, o relato se seguia como se fora escrito de um golpe, sem riscos, sem retorno e sem que houvesse necessidade de lembrar o que havia precedido. Damo-lo tal como saiu do lápis do médium, sem mudar nada, nem no estilo, nem nas ideias, nem no encadeamento dos fatos. Algumas repetições de palavras, e alguns pequenos pecados de ortografia tendo sido assinalados, Soulié nos encarregou pessoalmente de retificá-los, dizendo que nos assistiria nisso; quando tudo terminou, ele quis rever o conjunto, ao qual não fez senão algumas retificações sem importância, e dar autorização de publicar como se o entendesse, fazendo, disse ele, de bom grado a renúncia de seus direitos de autor. Todavia, consideramos não dever inseri-lo em nossa Revista sem o consentimento formal de seu amigo póstumo, a quem pertencia o direito, uma vez que em sua presença e por sua solicitação éramos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito de Frédéric Soulié. A.K.

Uma noite esquecida

Havia, em Bagdá, uma mulher do tempo de Aladim; é a sua história que vou contar

Num dos subúrbios de Bagdá morava, não longe do palácio da sultana Shéhérazad, uma velha mulher chamada Manouza. Essa velha era motivo de terror para toda a cidade, porque era feiticeira das mais apavorantes. Em sua casa, à noite, se passavam coisas tão assustadoras que, logo que o sol se deitava, ninguém se arriscava passar diante de sua morada, a menos que fosse uma amante à procura de um filtro para uma senhora rebelde, ou uma mulher abandonada em busca de um bálsamo para colocar sobre a ferida que seu amante lhe fizera, abandonando-a.

Um dia, pois, em que o sultão estava mais triste que de hábito, e que a cidade estava numa grande desolação, porque ele queria que perecesse a sultana favorita, e que a seu exemplo todos os maridos eram infiéis, um jovem deixou uma magnífica habitação situada ao lado do palácio da sultana. Esse jovem trajava uma túnica e um turbante de cor sombria; mas sob essas simples vestes havia um grande ar de distinção. Procurava se esconder ao longo das casas, como gatuno, ou amante temeroso de ser surpreendido. Dirigia seus passos para o lado de Manouza, a feiticeira. Uma viva ansiedade pintava sobre os seus traços, que mostravam a preocupação que o agitava. Atravessou as ruas, as praças com rapidez, e, todavia, com grande precaução.

Chegado perto da porta, hesitou alguns minutos, depois decidiu bater. Durante um quarto de hora, teve angústias mortais, porque ouvia ruídos que nenhum ouvido humano havia escutado; uma matilha de cães uivando com ferocidade, gritos lamentáveis, cantos de homens e de mulheres, como ao fim de uma orgia, e, para clarear todo esse tumulto, luzes correndo de alto a baixo da casa, fogos fátuos de todas as cores; depois, como por encantamento, tudo cessou: as luzes se extinguiram e a porta se abriu.

O visitante ficou um instante interdito, não sabendo se devia entrar no corredor sombrio, que se oferecia à visão. Enfim, armando-se de coragem, penetrou audaciosamente. Depois de caminhar, às apalpadelas, o espaço de uns trinta passos, encontrou-se em face de uma porta dando para uma sala, clareada somente por uma lâmpada de cobre de três bicos, suspensa no meio do teto.

A casa que, depois do ruído que ouvira da rua, parecia dever ser muito habitada, tinha agora o ar deserto; essa sala que era imensa, e devia, pela sua construção, ser a base do edifício, estava vazia, excetuando-se os animais empalhados, de todas as espécies, com os quais estava guarnecida.

No meio dessa sala, havia uma pequena mesa coberta de livros de mágicos, e, diante dessa mesa, numa grande poltrona, estava sentada uma pequena velha, alta apenas dois côvados, e de tal modo embrulhada de xales e de turbantes, que era impossível ver seus traços. À aproximação do estranho, ela levantou a cabeça e mostrou, aos seus olhos, o mais terrível rosto que ele podia imaginar.

Eis-te aqui, senhor Noureddin, disse ela, fixando seus olhos de hiena sobre o jovem que entrara; aproxime-se! Faz vários dias que meu crocodilo, de olhos de rubis, me anuncia tua visita. Dize se é um filtro o de que precisas; dize se é uma fortuna. “Mas, que digo eu, uma fortuna! Não a tens que faz inveja ao próprio sultão? Não és o mais rico como és o mais belo? É provavelmente um filtro que vens procurar. Qual é, pois, a mulher que ousa ser-te cruel? Enfim, não devo nada dizer, eu não sei nada, estou pronta para escutar tuas dificuldades e para dar-lhes os remédios necessários, se, todavia, minha ciência tiver o poder de ser útil a ti. Mas que fazes, pois, a me olhar assim sem avançares? Terias medo?

Talvez eu te apavore? Tal como me vês, antigamente era bela; mais bela que todas as mulheres hoje existentes em Bagdá; foram os desgostos que me tornaram tão feia. Mas que te causam meus sofrimentos? Aproxima-te; eu te escuto; somente não posso dar-te senão dez minutos, assim, despacha-te.

Noureddin não estava muito tranquilo; entretanto, não queria mostrar aos olhos de uma velha mulher a perturbação que o agitava, avançou e lhe disse: Mulher, vim por uma coisa grave; de tua resposta depende a sorte de minha vida; vais decidir de minha felicidade ou de minha morte. Eis do que se trata

O sultão quer matar Nazara; eu a amo; vou contar-te de onde vêm esse amor, e venho pedir-te trazer um remédio, não a minha dor, mas a sua infeliz posição, porque eu não quero que ela morra. Sabes que meu palácio é vizinho daquele do sultão; nossos jardins se tocam. Há mais ou menos seis luas que, uma tarde, passeando nesses jardins, ouvi uma encantadora música acompanhada da mais deliciosa voz de mulher que jamais ouvi. Querendo saber de onde isso provinha, aproximei-me dos jardins vizinhos, e reconheci que era de um quarto de verdura habitado pela sultana favorita. Fiquei vários dias absorvido por esses sons melodiosos; noite e dia, revia a bela desconhecida cuja voz me seduzia; porque é preciso dizer-te que, em meu pensamento, ela não podia ser senão bela.

Passeava, cada tarde, nas mesmas alamedas onde ouvira essa encantadora harmonia; durante cinco dias, isso foi em vão; enfim, no sexto dia a música se fez ouvir de novo; então, não podendo mais conter-me, aproximei-me do muro e vi que era preciso pouco esforço para escalá-lo.

Depois de alguns momentos de hesitação, tomei uma grande decisão: passei do meu para o jardim vizinho; ali, vi, não uma mulher mas uma huri, a huri favorita de Maomé, uma maravilha enfim! À minha visão, ela assustou-se um pouco, mas, lançando-me aos seus pés, pedi-lhe que não tivesse nenhum temor em ouvir-me; disse-lhe que seu canto me atraíra e assegurei-lhe que não encontraria em minhas ações senão o mais profundo respeito; ela teve a bondade de me ouvir.

A primeira noite se passou falando de música. Também cantei, e me ofereci para em acompanhá-la; ela nisso consentiu, e marcamos encontro para o dia seguinte, à mesma hora nessa hora, ela estava mais tranquila; o sultão estava com seu conselho e a vigilância menor. As duas ou três primeiras noites se passaram inteiramente com a música; mas a música é a voz dos amantes, e desde o quarto dia não estávamos mais estranhos um ao outro. Nós nos amamos. Que bela estava! Como sua alma era bela também! Fizemos, muitas vezes, o projeto de fugirmos. Ai! por que não o executamos? Seria menos infeliz, e ela não estaria prestes a sucumbir. Essa bela flor não estaria no momento de ser colhida pela foice que vai arrebatá-la à luz.

Segundo artigo

Nota. – Os algarismos romanos indicam as suspensões que ocorreram no ditado. Frequentemente, não era retomada senão depois de uma interrupção de duas ou três semanas, e, apesar disso, assim como o observamos, o relato se seguiu como se fora escrito de um só jato; e esse não é um dos caracteres os menos curiosos dessa produção de além-túmulo. O estilo nela é correto e perfeitamente apropriado ao assunto. Nós o repetimos, para aqueles que não veriam ali senão uma coisa fútil, não a damos como uma obra filosófica, mas como um estudo. Para o observador, nada é inútil: ele sabe aproveitar de tudo para aprofundar a ciência que estuda.

III

Nada, entretanto, parecia dever perturbar nossa felicidade; tudo era calma ao nosso redor: vivíamos em uma perfeita segurança, quando uma tarde, no momento em que nos críamos na maior segurança, de repente, apareceu ao nosso lado (posso dizer assim, porque estávamos numa praça circular onde chegavam várias alamedas), de repente, pois, e ao nosso lado, apareceu o sultão acompanhado de seu grão-vizir. Todos os dois tinham um semblante assustador a cólera havia transtornado seus traços; estavam, o sultão sobretudo, em uma exasperação fácil de compreender. O primeiro pensamento do sultão foi de me fazer perecer, mas sabendo a qual família eu pertencia, e a sorte que o esperaria se ousasse tirar um só cabelo de minha cabeça, ele disfarçou (como em sua chegada eu me coloquei à parte), ele disfarçou não me perceber, e se precipitou como um furioso sobre Nazara, a quem prometeu não fazer esperar o castigo que ela merecia. Ele a carregou consigo, sempre acompanhado do vizir. Para mim, o primeiro momento de temor passou e me apressei em retornar para o meu palácio, para procurar um meio de subtrair o astro de minha vida das mãos desse bárbaro, que provavelmente iria cortar essa querida existência.

– E depois, que fizeste? perguntou Manouza; porque enfim, em tudo isso não vejo em que estás tanto atormentado para tirar tua amante do mau onde a colocaste por tua falta. Tu me dás o efeito de um pobre homem que não tem nem coragem, nem vontade, quando se trata de coisas difíceis.

– Manouza, antes de condenar, é preciso escutar. Não vim atrás de ti sem antes experimentar de todos os meios em meu poder. Fiz ofertas ao sultão; prometi-lhe ouro, joias, camelos, palácios mesmo, se me entregasse minha doce gazela; a tudo desdenhou.

Vendo meus sacrifícios repelidos, fiz ameaças; as ameaças foram desprezadas como o resto: a tudo ele riu e zombou de mim. Também experimentei introduzir-me no palácio; corrompi escravos, cheguei ao interior dos apartamentos; apesar de todos os meus esforços, não consegui chegar até a minha bem-amada.

– Tu és franco, Noureddin; tua sinceridade merece uma recompensa, e terás o que vieste procurar. Vou te fazer ver uma coisa terrível: se tendes a força de suportar a prova pela qual te farei passar, podes estar seguro que reencontrarás a tua felicidade de outro-ra.

Dou-te cinco minutos para te decidir.

Decorrido esse tempo, Noureddin disse à Manouza que ele estava pronto para fazer tudo aquilo que ela quisesse para salvar Nazara. Então, a feiticeira se levantando, disse-lhe: Pois bem! Caminhe. Depois, abrindo uma porta colocada no fundo do apartamento, fê-lo passar diante dela. Eles atravessaram um pátio sombrio, repleto de objetos horrendos: serpentes, sapos que passeavam gravemente em companhia de gatos pretos, com o ar de pavonear entre esses animais imundos.

IV

Na extremidade desse pátio, encontrava-se outra porta que Manouza igualmente abriu; e, tendo feito passar Noureddin, entraram em uma sala baixa, clareada somente pelo alto: a luz vinha de uma cúpula muito alta guarnecida de vidros coloridos, que formavam toda espécie de arabescos. No meio dessa sala se encontrava um fogareiro aceso, e sobre um tripé colocado sobre esse fogareiro, um grande vaso de bronze no qual ferviam todas espécies de ervas aromáticas, cujo odor era tão forte que se podia com dificuldade suportar. Ao lado desse vaso se encontrava uma espécie de poltrona em veludo negro, de uma forma extraordinária. Quando se sentou em cima, no instante, desapareceu inteiramente; porque Manouza não estava nela colocada, Noureddin a procurou alguns instantes sem poder percebê-la. De repente, ela reapareceu e lhe disse: estás sempre disposto? “- Sim, repetiu Noureddin. – Pois bem! Vai sentar-te nessa poltrona e espera.” Antes que Noureddin fosse para a poltrona, tudo mudou de aspecto, e a sala se povoou de uma grande multidão de figuras brancas que primeiro apenas visíveis, pareceram em seguida de um vermelho de sangue, dir-se-ia-se de homens cobertos de chagas sangrentas, dançando rondas infernais, e no meio delas Manouza, cabelos esparsos, olhos chamejantes, as roupas em farrapos, e sobre a cabeça uma coroa de serpentes. Na mão, à guisa de cetro, ela brandia uma tocha acesa, lançando chamas cujo odor atacava a garganta. Depois de terem dançado um quarto de hora, detiveram-se, de repente, sob um sinal de sua rainha que, para esse efeito, havia lançado sua tocha na caldeira em ebulição. Quando todas essas figuras foram se alinhando ao redor da caldeira, Manouza fez se aproximarem os mais velhos, que se reconhecia pela sua longa barba branca, e lhes disse: “vem aqui, tu o segundo do diabo; vou te encarregar de uma missão muito delicada. Noureddin quer Nazara, eu prometi entregar-lhe; é coisa difícil; eu conto, Tanaple, com teu concurso em tudo. Noureddin suportará todas as provas necessárias; agi em consequência. Sabes o que quero, faze o que quiseres, mas alcance; trema se fracassares. Recompenso quem me obedece, mas infeliz daquele que não faz a minha vontade. – Tu serás satisfeita, disse Tanaple, e tu podes contar comigo. – Pois bem, vai e age.”

V

Apenas terminara essas palavras e tudo mudou aos olhos de Noureddin; os objetos tornaram-se o que eram antes, e Manouza se encontrou sozinha com ele. “Agora, disse ela, retoma à tua casa e espera; enviar-te-ei um dos meus gnomos, e te dirá o que tem a fazer, obedece e tudo irá bem.”

Noureddin ficou muito feliz com essas palavras, e mais feliz ainda por deixar o antro da feiticeira. Atravessou de novo o pátio e o quarto por onde entrara, depois ela o reconduziu até à porta exterior. Ali, Noureddin tendo-lhe perguntado se deveria retornar, ela respondeu: “Não; para o momento, é inútil; se isso se tornar necessário, far-te-ei saber.”

Noureddin se apressou em retornar ao seu palácio; estava impaciente por saber se se passara alguma coisa nova desde a sua saída. Encontrou tudo no mesmo estado; somente, na sala de mármore, sala de repouso no verão entre os habitantes de Bagdá, ele viu perto da bacia colocada no meio dessa sala, uma espécie de anão de uma fealdade repelente. Seu vestuário era de cor amarela, bordado de vermelho e azul; tinha uma bossa monstruosa, pernas pequenas, o rosto gordo, com olhos verdes e vesgos, uma boca fendida até as orelhas, e os cabelos de um ruivo podendo rivalizar com o sol.

Noureddin lhe perguntou como se encontrava ali, e o que viera fazer. “Eu sou enviado de Manouza, disse, para te entregar a tua amante; eu me chamo Tanaple. – Se tu és, realmente, o enviado de Manouza, estou pronto para obedecer suas ordens, mas despacha-te, aquela que amo está a ferros e tenho pressa dela dali sair. – Se estás pronto, conduze-me em seguida para o teu apartamento, e dir-te-ei o que é preciso fazer. – Segue-me, pois, disse Noureddin.”

VI

Depois de atravessar vários pátios e jardins, Tanaple se encontrou no apartamento do jovem; fechou-lhe todas as portas, e disse: “Tu sabes que deves fazer tudo o que eu te disser, sem objeção. Vais vestir essas roupas de negociante. Levarás sobre teu dorso esse pacote que encerra os objetos que nos são necessários; eu, vou me vestir de escravo e levarei um outro pacote.”

Para sua grande estupefação, Noureddin viu dois enormes pacotes ao lado do anão, e todavia não vira e nem ouvira ninguém traze-los. “Em seguida, continuou Tanaple, iremos à casa do sultão. Dir-lhe-ás que tens objetos raros e curiosos; e que se quiser oferecê-los à sultana favorita, nenhuma huri terá semelhantes. Tu conheces sua curiosidade; terá o desejo de nos ver. Uma vez admitidos à sua presença, não terás dificuldade em desdobrar tua mercadoria e lhe venderás tudo o que levamos: são roupas maravilhosas que mudam as pessoas que as colocam. Logo que o sultão e a sultana deles se revestirem, todo o palácio os tomará por nós e nós por eles: tu pelo sultão, e eu por Ozara, a nova sultana. Operada essa metamorfose, estaremos livres para agir à nossa maneira e tu libertarás Nazara.”

Tudo se passou como Tanaple havia anunciado; a venda ao sultão e a transformação. Depois de alguns minutos de horrível furor da parte do sultão, que queria caçar esses importunes e fazia um ruído espantoso, Noureddin tendo, segundo a ordem de Tanaple, chamado vários escravos, fez prender o sultão e Ozara como sendo escravos rebeldes, e ordenou que fossem o conduzidos, em seguida, para junto da prisioneira Nazara. Ele queria, dizia, saber se ela estava disposta a confessar seu crime, e se ela estava pronta para morrer. Quis também que a favorita Ozara fosse com ele, para ver o suplício que infligia às mulheres infiéis. Dito isso, ele caminhou, precedido do chefe dos eunucos, durante um quarto de hora em um sombrio corredor, ao cabo do qual havia uma porta de ferro pesada e maciça. Tendo o escravo tomado uma chave, abriu três fechaduras, e eles entraram em um gabinete grande, longo e alto de três ou quatro côvados; ali, sobre uma esteira de palha, estava sentada Nazara, um cântaro com água e algumas tâmaras ao seu lado. Não era mais a brilhante Nazara de outrora; ela estava bela, mas pálida e magra. À vista daquele que ela tomou por seu senhor, estremeceu de medo, porque ela pensava que sua hora havia chegado.

VII

– Levantai-vos, disse-lhe Noureddin, e segui-me. Nazara, banhada em lágrimas, lançou-se-lhe aos pés e implorou sua graça. -Nada de piedade para uma tal falta, disse o pretenso sultão; preparai-vos para morrer. Noureddin sofria muito por ter para com ela semelhante linguagem, mas não julgou chegado o momento de se fazer conhecer.

Nazara, vendo que era impossível dobrá-lo, o seguiu tremente. Eles retornaram aos apartamentos; ali Noureddin disse a Nazara para ir vestir roupas mais convenientes; depois, terminada a toilete, sem outra explicação, disse-lhe que iriam, ele e Ozana (o anão) conduzi-la para um bairro de Bagdá onde teria o que ela merecia. Todos os três se cobriram com uma grande manta, para não serem reconhecidos, e saíram do palácio. Mas, ó terror! apenas passaram as portas, mudaram de aspecto aos olhos de Nazara; não eram mais o sultão e Ozana, nem os mercadores de roupas, mas o próprio Noureddin e Tanaple; eles ficaram tão amedrontados, sobretudo Nazara, ao se verem tão perto da morada do sultão, que aceleraram o passo com medo de serem reconhecidos.

Apenas entraram na casa de Noureddin, esta achou-se cercada por uma multidão de homens, escravos e de tropas, enviados pelo sultão para detê-los.

Ao primeiro ruído, Noureddin, Nazara e o anão se refugiaram no apartamento mais retirado do palácio. Ali, o anão lhes disse para não se amedrontarem; que não havia senão uma coisa a se fazer para não serem presos, que era colocar o pequeno dedo da mão esquerda na boca e assoviar três vezes; que Nazara deveria fazer o mesmo, e que, instantaneamente, tornarse-iam invisíveis para todos aqueles que quisessem se apoderar deles.

O ruído continuando a aumentar de modo alarmante, Nazara e Noureddin seguiram o conselho de Tanaple; quando os soldados entraram no apartamento, encontraram-no vazio, e se retiraram depois de fazerem as mais minuciosas buscas. Então, o anão disse a Noureddin para fazer ao contrário do que haviam feito, quer dizer, colocar o pequeno dedo da mão direita na boca e assoviar três vezes; fizeram-no e logo se acharam como eram antes.

O anão, em seguida, fez notar que, não estando em segurança na casa, deveriam deixá-la por algum tempo, a fim de que se apaziguasse a cólera do sultão. Ofereceu-lhes, em consequência, conduzi-los para seu palácio subterrâneo, onde estariam muito comodamente, enquanto se achassem os meios de tudo arranjar, a fim de que pudessem entrar sem medo em Bagdá, e nas melhores condições possíveis.

VIII

Noureddin hesitou, mas Nazara tanto lhe pediu, que acabou por consentir. O anão disse-lhes para irem ao jardim, comerem uma laranja com a cabeça voltada para o nascente, e que, então, seriam transportados sem o perceberem. Tiveram o ar de dúvida, mas Tanaple lhes disse que não compreendia sua dúvida depois do que fizera por eles.

Tendo descido ao jardim, e tendo comido a laranja do modo indicado, se acharam subitamente elevados a uma altura prodigiosa; depois, subitamente, sentiram um forte abalo e um grande frio, e se sentiram descendo com grande velocidade. Nada viram durante o trajeto, mas quando tiveram consciência da situação, se acharam sob a terra, num magnífico palácio iluminado por mais de vinte mil velas.

Deixemos nossos amantes em seu palácio subterrâneo e retornemos ao nosso pequeno anão, que deixamos na casa de Noureddin.

Sabeis que o sultão havia enviado soldados para se apoderarem dos fugitivos; depois de haverem explorado os mais retirados cantos da habitação, assim como os jardins, não encontrando nada, foram forçados a se retirarem, para informarem ao sultão de sua tentativa infrutífera.

Tanaple acompanhara a todos ao longo do caminho; olhava-os com ar astuto e, de tempo em tempo, lhes perguntava qual preço o sultão daria àquele que trouxesse de novo os dois fugitivos. – Se o sultão, acrescentava ele, estiver disposto a conceder-me uma hora de audiência, dir-lhe-ei alguma coisa que o apaziguará, e ficará encantado por se livrar de uma mulher como Nazara, que há nela um mau gênio, e que faria descer sobre ele todas as desgraças possíveis, se ela permanecesse algumas luas mais. O chefe dos Eunucos prometeu-lhe incumbir-se disso e transmitir-lhe a resposta do sultão.

Apenas entrados no palácio, o chefe dos negros veio dizer que seu senhor o esperava, prevenindo-lhe, todavia, que seria furado por uma lança se avançasse imposturas.

Nosso pequeno monstro se apressou em entrar na casa do sultão. Chegado diante desse homem duro e severo, inclinou-se três vezes como é habitual, diante dos príncipes de Bagdá.

– Que tens a me dizer? perguntou-lhe o sultão. Sabes o que te espera se não disseres a verdade. Fala; eu te escuto.

“Grande Espírito, celeste Lua, tríade de Sóis, não anúncio senão a verdade. Nazara é filha da fada Negra e do gênio a Grande Serpente dos Infernos. Sua presença, em tua casa, te traria todas as pragas inimagináveis: praga das serpentes, eclipse do sol, lua azul impedindo os amores da noite; todos os teus desejos, enfim, iriam ser contrariados, e tuas mulheres envelhecidas antes mesmo que uma lua haja passado. Poderia dar-te uma prova do que adianto; sei onde se encontra Nazara; se quiseres, irei procurá-la e poderás convencer-te por ti mesmo. Não há senão um meio de evitar-se essas desgraças, é dar-lhe a Noureddin. Noureddin não é mais o que pensas; ele é filho da feiticeira Manouza e do gênio o Rochedo de Diamante. Se tu uni-los, em reconhecimento, Manouza te protegerá; se recusares…. Pobre príncipe! Eu te lamento. Faze a prova; depois disso decidirás.”

O sultão escutou com bastante calma o discurso de Tanaple; mas, logo depois, chamou uma tropa de homens armados, e ordenou-lhes aprisionarem o pequeno monstro, até que um acontecimento viesse convencê-lo daquilo que acabara de ouvir.

– Acreditava, disse Tanaple, fazer favor a um grande príncipe; mas vejo que me enganei e deixo aos gênios o cuidado de vingar seus filhos. Dito isso, seguiu aqueles que vieram para prendê-lo.

IX

Tanaple estava na prisão apenas há algumas horas, quando 9 Sol se cobriu com uma nuvem de cor sombria, como se um véu quisesse ocultá-lo à Terra; depois um grande ruído se fez ouvir, e de uma montanha, colocada à entrada da cidade, saiu um gigante armado que se dirigiu para o palácio do sultão.

Não vos direi que o sultão ficou muito calmo; longe disso; tremia como uma folha de laranjeira, que Éolo tivesse atormentado. A aproximação do gigante, ordenou fechar todas as portas, e todos os seus soldados estarem prontos, armas às mãos, para defenderem seu príncipe. Mas, ó estupefação! à aproximação do gigante, todas as portas se abriram, como impelidas por mão secreta; depois, gravemente, o gigante avançou até o sultão, sem dar um sinal, nem dizer uma palavra. À sua vista, o sultão se lançou de joelhos, pediu ao gigante poupá-lo e dizer o que exigia.

“Príncipe! disse o gigante, não digo grande coisa pela primeira vez; não faço mais que te advertir. Faça o que Tanaple te aconselhou, e nossa proteção ser-te-á assegurada; de outro modo, sofrerás a pena de tua obstinação.” Dito isso, retirou-se.

O sultão ficou primeiro muito amedrontado; mas, ao cabo de um quarto de hora, estando recomposto de sua perturbação, longe de seguir os conselhos de Tanaple, fez logo publicar um édito que prometia uma magnífica recompensa àquele que pudesse colocá-lo nas pegadas dos fugitivos; depois, tendo colocado guardas nas portas do palácio e da cidade, esperou pacientemente. Mas sua paciência não foi de longa duração, ou pelo menos não lhe deixou tempo para colocá-la à prova. A partir do segundo dia, apareceu às portas da cidade um exército que tinha o ar de ter saído de baixo da terra; os soldados estavam vestidos com peles de toupeiras, e tinham armaduras de carapuças de tartarugas; levavam clavas feitas com lascas de rocha.

A sua aproximação, os guardas quiseram resistir, mas o aspecto formidável do exército logo fê-los abaixarem as armas; abriram as portas sem falarem, sem quebrar suas fileiras, e a tropa inimiga foi gravemente até o palácio. O sultão quis se mostrar à porta de seus apartamentos; mas, para sua grande surpresa, seus guardas adormeceram e as portas se abriram por si mesmas; depois o chefe da armada avançou com passo grave até o sultão e lhe disse:

“Venho dizer-te que Tanaple, vendo tua obstinação, nos enviou para te procurar; em lugar de ser o sultão de um povo que não sabes governar, vamos conduzir-te às toupeiras; tu mesmo torna-te-ás toupeira e serás sultão aveludado. Vê se isso te convém antes que fazer o que Tanaple te ordenou; dou-te dez minutos para refletir.

O sultão gostaria de resistir; mas, para sua felicidade, após alguns momentos de reflexão, consentiu naquilo que se lhe exigiam; não quis colocar senão uma condição, de que os fugitivos não habitassem seu reino. Foi-lhe prometido e, no mesmo instante, sem saber de que lado e como, o exército desapareceu aos seus olhos.

Agora que a sorte de nossos amantes estava completamente assegurada, voltemos para junto deles. Sabeis que os deixamos no palácio subterrâneo.

Depois de alguns minutos, ofuscados e arrebatados pelo aspecto das maravilhas que os cercavam, quiseram visitar o palácio e seus arredores. Viram jardins encantadores. Coisa estranha! via-se tão claro quanto a céu descoberto. Aproximaram-se do palácio: todas as suas portas estavam abertas, e havia preparativos como para uma grande festa. À porta estava uma dama em magnífico vestido. Nossos fugitivos não a reconheceram de início; mas, aproximando-se mais, viram Manouza, a feiticeira, Manouza toda transformada; não era mais aquela velha mulher, feia e decrépita, era uma mulher já de uma certa idade, mas ainda bela, e com um grande ar.

“Noureddin, disse-lhe ela, te prometi ajuda e assistência. Hoje vais receber minha promessa; estás no fim de teus males e vais receber o prêmio de tua constância: Nazara vai ser tua mulher; além disso dou-te este palácio; habitá-lo-ás e serás o rei de um povo de bravos e reconhecidos súditos; são dignos de ti, como és digno de reinar sobre eles.”

A essas palavras, música harmoniosa fez-se ouvir, de todos os lados, apareceu uma multidão inumerável de homens e de mulheres em roupas de festa; à sua frente estavam os grandes senhores e as grandes senhoras que vieram se prosternar aos pés de Noureddin; ofereceramlhe uma coroa de ouro, enriquecida com diamantes, dizendo que o reconheciam por seu rei; que esse trono lhe pertencia como herança de seu pai; que foram encantados, há 400 anos pela vontade de mágicos maus, que esse encanto não deveria acabar senão com a presença de Noureddin. Em seguida, fizeram longo discurso pelas suas virtudes e as de Nazara.

Então, Manouza disse-lhe: Sois felizes, nada mais tenho a fazer aqui. Se tiverdes necessidade de mim, batei sobre a estátua que está no meio de vosso jardim e, no mesmo instante, eu virei. Depois ela desapareceu.

Noureddin e Nazara gostariam de retê-la por mais tempo, para lhe agradecer todas as suas bondades para com eles. Depois de alguns momentos, passados conversando, retornaram aos seus súditos; as festas e as alegrias duraram oito dias. Seu reinado foi longo e feliz; viveram milhares de anos, e posso dizer mesmo que vivem ainda; somente o país não foi reencontrado, ou, por melhor dizer, jamais foi muito conhecido.

Fim.

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