Dever cumprido, direito esquecido!

Autor: Rogério Miguez

Quando uma sociedade se preocupa em demasia na especificação de direitos do cidadão, jamais encontrará a paz e harmonia para se viver em comunidade.

Vemos uma onda crescente em delinear, estruturar, estabelecer detalhes e sob quais condições podemos e devemos reclamar os nossos tão proclamados direitos. Cada vez mais pensadores se debruçam diante das condutas sociais e percebem um novo capítulo no vasto campo do Direito; descoberto este seguimento, surgem outras leis contemplando os respectivos novos direitos, adicionalmente, indicando penalidades aos transgressores e condições de aplicabilidade.

Contudo, assim cremos, tudo indica que este sistema continuado de individualização dos direitos parece não dar conta dos conflitos e rusgas sociais surgindo a todo o momento, pois o desrespeito aos direitos do próximo é cada vez mais patente e recorrente, pouco importando as penas associadas, pois, de modo geral poucos as temem.

O que está acontecendo? Leis não faltam, profissionais atuando na área também não seria o problema, então por qual razão há tanto desrespeito ao direito alheio?

A imprensa alarmista e desnorteada noticia constantemente incontáveis casos de: feminicídio, violência contra a infância e adolescência, abandono de idosos, desrespeito no trânsito provocando mortes e mutilações nos envolvidos, assassinatos banais por causa de vaga de estacionamento, brigas devido a barulho de animais à noite. Reuniões de condomínios são o retrato característico da  intemperança, apesar de normalmente existir um bem detalhado regimento interno estabelecendo todos os direitos e condutas dos integrantes do edifício ou da comunidade.

Tudo parece apontar que é possível noticiar, durante todas as vinte e quatro horas de um dia, seguidamente, conflitos de toda ordem, caracterizados pelo desrespeito ao direito do próximo, alguns atingindo as raias do absurdo, sem o vislumbre de alguma mudança, a curto prazo de preferência.

É uma realidade. Entretanto, há milênios foi apresentada à humanidade a mais básica das leis divinas, regendo as interações sociais e o convívio entre cidadãos, e parece que ainda vai demorar muito até que definitivamente aceitemos este princípio Crístico e, principalmente, o coloquemos em prática: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Mt, 22:39), preceito que em suma recomenda o dever de amar sem distinção, e por extensão, acrescentamos, não apenas a todos, mas a tudo.

Esta lei também foi revelada por Moisés há quase quatro milênios, e ainda se constitui em um enorme desafio para todos nós, contudo, quando foi escrita em Levítico, aplicava-se ao povo de Israel e não a qualquer próximo. Sendo assim, o ensino de Jesus seria mais abrangente: Não te vingarás e não guardaras rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Lv, 19:18).

Um antigo astro da música pop, um pacifista, tendo a vida abreviada por uma arma de fogo, destas que agora se correm às lojas para adquiri-las, na expectativa vã de garantir a própria segurança, escreveu em uma de suas belas canções sobre a possibilidade de não existir: países, possessões, céu, inferno e mesmo religiões, ganância e fome no mundo, dizendo-se um sonhador.

Aproveitando os dizeres do inesquecível John Lennon, talvez o mais criativo da banda The Beatles, poderíamos também sonhar um pouco e igualmente imaginar um mundo sem direitos, apenas deveres. Não seria a materialização do tão desejado e buscado paraíso? Se todos nós respeitássemos uns aos outros, observando apenas o cumprimento de nossos deveres incondicionalmente, em qualquer situação e em todos os momentos, quem ousaria levantar a voz para reivindicar em alto e bom tom seus tão bem delineados direitos!? Do que e de quem ele reclamaria? Quem se sentiria lesado?

Sim, o cumprimento de nossos deveres em relação à família, nas ruas, nos prédios, nos clubes, nas igrejas, nas assembleias, no respeito às muitas diversidades, não desejando pelo pensamento malefícios ao próximo, certamente levaria o convívio social a patamares jamais imaginados. E este sonho pode tornar-se realidade tão mais rápido quanto mais nos esforçarmos para substituir o pesadelo moderno em que vivemos, se assim podemos nos expressar, pela observação dos nossos deveres sintetizados na máxima relembrada pelo  Cristo, agora há dois milênios: Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas (Mt, 7:12).

Este postulado também já era conhecido entre os judeus, pois no livro de Tobias lemos: Não faças a ninguém o que não queres que te façam (4:15), entretanto, esta expressão se apresenta sob a forma negativa: não faças…, enquanto o texto de Mateus emprega a forma positiva: fazei-o vós…Conclui-se ser insuficiente não fazer apenas o mal, porquanto é absolutamente necessário fazer o bem. Neste sentido o ensinamento do Cristo é mais abrangente do que aquele proveniente da tradição hebraica. Esta observação nos arremete à um especial diálogo travado por Allan Kardec com os Espíritos que lhe assessoraram, registrado na primeira obra fundamental da Doutrina, O Livro dos Espíritos[1]:

Para agradar a Deus e assegurar a sua posição futura, bastará que o homem não pratique o mal?

“Não; cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças, porquanto responderá por todo mal que haja resultado de não haver praticado o bem.”

Mais uma vez, agora uma orientação doutrinária espírita básica, assinalando o dever de praticar todo o bem possível como norma capital para se alcançar uma boa posição futura, agindo desta forma conforme O Criador espera de Suas criaturas, ou seja, não basta apenas não fazer o mal.

Algumas perguntas à frente na mesma obra citada encontramos[2]:

Toda a lei de Deus está contida na máxima do amor ao próximo, ensinada por Jesus?

“Certamente essa máxima encerra todos os deveres dos homens uns para com os outros. Mas, é preciso mostrar a eles a sua aplicação, pois, do contrário, deixarão de praticá-la, como o fazem até hoje. Aliás, a lei natural abrange todas as circunstâncias da vida, e essa máxima é apenas uma parte da lei. Os homens necessitam de regras precisas; os preceitos gerais e muito vagos deixam grande número de portas abertas à interpretação.”

Como se depreende, só podemos reivindicar nossos direitos, esquecemo-nos frequentemente, se primeiramente respeitamos os do próximo, ou seja, se cumprimos o nosso dever. Assim, para haver direito reclamado há que antes existir dever plenamente cumprido.

Se nos reportarmos à Carta Magna, concluiremos que as bem-aventuranças não nos convidam à reivindicações, e mais, Jesus ainda orientou dar à César o que fosse de César. O próprio Amigo Celeste reencarnando neste orbe, por hora, de mazelas e infortúnios, deu uma demonstração de cumprimento do dever, pois Ele certamente já detinha o direito de permanecer junto ao Pai pela eternidade afora. E como se não bastasse, pela parábola do bom samaritano, ratifica o princípio do dever cumprido antes de qualquer solicitação ou exigência, sejam elas quais forem.

Apontando uma última razão para o cumprimento dos deveres, sem obviamente esgotar o assunto – muito pelo contrário, estamos bem longe disto -, quase ao final desta obra granítica, O Livro dos Espíritos, destacamos esta pérola de ensino oferecida por Santo Agostinho[3]:

Compreendemos toda a sabedoria desta máxima [Conhece-te a ti mesmo], mas a dificuldade está precisamente em cada um conhecer-se a si mesmo. Qual o meio de consegui-lo?

“Fazei o que eu fazia quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava em revista o que havia feito e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para se queixar de mim.” (…)

Conclui-se, conforme Santo Agostinho ensina, que o cumprimento do dever auxilia-nos no processo do autoconhecimento, tão oportuno e necessário nestes dias conturbados que nos cercam.

O dever, sempre o dever, por isso podemos assegurar sem receio de errar: se o dever for cumprido na generalidade pela população, durante o dia a dia, os direitos tão buscados nos tempos hodiernos serão definitivamente esquecidos, tornando-se um conceito plenamente superado pelo primeiro.

Referências

1 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. Comemorativa do Sesquicentenário. Brasília: FEB, 2007. q. 642.

2 ________;_______. q. 647.

3 ________;_______. q. 919ª.

DICA

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