Uma visão espírita do salmo 23

Autor: Fernando Hora

¹ O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. ² Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. ³Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. ⁴Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.⁵ Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. ⁶Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias

Sm 23 :1 a 6

A Doutrina dos Espíritos responde, de forma consistente, às questões existenciais fundamentais mais importantes, ou seja, os terráqueos são espíritos imperfeitos em fase de provas e expiações e, para tanto, interagem entre si gozando de relativo livre-arbítrio e recebendo amparo permanente das inteligências superiores, com as quais podemos, algumas vezes, nos comunicar.

A curta descrição resume um contexto de alta complexidade, tanto que nos ocupa horas e horas de palestras, estudos e meditação por todo o restante da existência física. Assim, nas repentinas horas desafiadoras ou de aflição, só “saber” pode não bastar a uma pronta motivação, mudança de ânimo ou coragem para vencer a dificuldade atípica de maior monta. Nessas horas, algumas passagens bíblicas podem vir a ser poderosos estímulos deflagradores dos “reflexos condicionados” mencionados por André Luiz em Mecanismos da Mediunidade, gerando a reação necessária à superação.

Um desses poderosos ‘gatilhos’ é o conhecido Salmo 23, de autoria atribuída ao Rei Davi, por sua beleza, singeleza e concisão e, ainda, por conter alegorias associáveis aos conhecimentos doutrinários, agregando mais maturidade à carga emocional.

Contextualizado no ambiente histórico do pastoreio da Judeia, o salmo se revela não apenas como um poema de confiança, mas como expressão delicada da pedagogia divina em ação. Quando o salmista afirma “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará”, reconhece que existe um plano amoroso sustentando a vida. O pastor da Judeia traçava previamente o caminho: sabia onde havia pasto, onde encontraria água, quais trechos exigiam vigilância e quais ofereciam descanso – nada era fruto do improviso. Essa imagem corresponde, com notável naturalidade, à programação reencarnatória descrita pela Doutrina Espírita. Antes de renascer são ajustadas as provas, reencontros, reparações e oportunidades de serviço. Assim, quando dizemos que nada nos faltará, estamos cientes de que nenhuma experiência útil ao seu progresso nos será negada, seja ela suave ou desafiadora.

Os versos que evocam verdes pastos e águas tranquilas remetem aos momentos de repouso e equilíbrio que visitam a existência. São períodos em que a vida, de forma providencial, suaviza o passo e permite a recomposição das forças. Nada ali é acaso: são intervalos preparados para que o Espírito assimile as lições já vividas e se prepare para as que virão. Mas o caminho não se resume à amenidade. O pastor, conhecedor da paisagem, sabia que certos vales sombrios serão inevitáveis. A expressão “vale da sombra da morte”, quando inserida no cenário da Judeia, adquire especial relevo: eram passagens estreitas, onde a luz mal entrava e onde o perigo se ocultava na escuridão. Eram temidas, mas necessárias para alcançar pastagens melhores. Assim também a existência terrena, entendida como mundo de expiações e provas, representa esse trecho mais árduo. Não é castigo, mas etapa indispensável; não é destino, mas travessia. E, como no pastoreio antigo, não se percorre sozinho: Deus acompanha o caminhante com recursos silenciosos, que se expressam em intuições, inspirações e circunstâncias que sustentam o ânimo.

Nesse ponto surgem as figuras da vara e do cajado. A vara, curta e firme, era instrumento de defesa contra ameaças que nada acrescentariam ao aprendizado do rebanho. Simboliza, portanto, a proteção espiritual que impede males sem propósito, muitas vezes sem que sequer os percebamos. Já o cajado, longo e encurvado na ponta, servia para corrigir o rumo da ovelha, afastá-la de perigos mais sutis ou trazê-la de volta quando insistia em permanecer imóvel. Ele representa as experiências que nos forçam a rever escolhas, abandonar a estagnação e reencontrar o caminho traçado antes de renascer. Se a vara evita o mal inútil, o cajado assegura o bem necessário. Juntos, expressam o cuidado integral do Pastor para com o rebanho.

Após a travessia do vale, o salmo descreve mesa posta, cabeça ungida e cálice que transborda. São imagens de retorno, restauração e plenitude. Na leitura espírita, remetem ao reencontro do Espírito consigo mesmo ao regressar ao plano espiritual, levando consigo os frutos do esforço empreendido na vida física. E é aqui que o sentido histórico do pastoreio se une ao sentido espiritual de modo ainda mais direto. Assim como nenhum pastor judeu conduzia o rebanho sem auxílio, Deus também não age isoladamente. Jesus, o Pastor das almas humanas, vela por nós com ternura e firmeza, e Ele próprio conta com mentores e benfeitores que colaboram no amparo cotidiano. Essa rede de auxílio, constante e discreta, cerca cada Espírito segundo suas necessidades, amparando, corrigindo, inspirando e protegendo, de modo que a travessia se faça com proveito.

Assim, o Salmo 23 deixa de ser apenas uma prece de consolo para se tornar um retrato sensível da pedagogia divina. Somos conduzidos, amparados e reorientados ao longo de toda a jornada, jamais entregues ao desamparo. O vale é passagem, não morada; a vara e o cajado nos defendem e nos guiam; e a presença constante do Pastor Maior, de Jesus e dos benfeitores assegura que a bondade e a misericórdia nos acompanharão por toda a vida, sustentando, dia após dia, a marcha silenciosa do Espírito rumo à paz, sem, como disse posteriormente o Divino Rabi, que nenhuma ovelha fique para trás.

É DE RESPEITO QUE ELAS GOSTAM