fbpx

O padeiro de Dieppe

Revista Espírita, março de 1860

Os fenômenos pelos quais os Espíritos podem manifestar sua presença são de duas naturezas, que se designam pelos nomes de manifestações físicas e de manifestações inteligentes. Pelas primeiras, os Espíritos atestam sua ação sobre a matéria; pelas segundas, eles revelam um pensamento mais ou menos elevado, segundo o grau de sua depuração.

Umas e outras podem ser espontâneas ou provocadas. São provocadas quando são solicitadas pelo desejo, e obtidas com a ajuda de pessoas dotadas de uma aptidão especial, dito de outro modo, de médiuns. Elas são espontâneas quando ocorrem naturalmente, sem nenhuma participação da vontade e, freqüentemente, na ausência de todo conhecimento e mesmo de toda crença espírita. É a essa ordem que pertencem certos fenômenos que não podem se explicar pelas causas físicas ordinárias. Não é necessário, entretanto, como já dissemos, apressar-se em atribuir aos Espíritos tudo o que é insólito e tudo aquilo que não se compreende. Não poderíamos muito insistir sobre este ponto, a fim de colocar em guarda contra os efeitos da imaginação e, freqüentemente, do medo. Nós o repetimos, quando o fenômeno extraordinário se produz, o primeiro pensamento deve ser que há uma causa material, porque é a mais freqüente e mais provável, tais são sobretudo os ruídos, e mesmo certos movimentos de objetos. O que é necessário fazer, neste caso, é procurar a causa, e é mais que provável que se encontrará uma muito simples e muito vulgar. Dizemo-lo ainda, o verdadeiro, e por assim dizer o único sinal real de intervenção dos Espíritos, é o caráter intencional e inteligente do efeito produzido, então quando a impossibilidade de uma intervenção humana está perfeitamente demonstrada. Nessas condições, raciocinamos segundo este axioma de que todo efeito tem uma causa, e que todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente, torna-se evidente que se a causa não está nos agentes ordinários de efeitos materiais, está fora desses mesmos agentes; que se a inteligência que atua não é uma inteligência humana, é necessário que ela esteja fora da humanidade. • Há, pois, inteligências extra humanas? – Isto parece provável; secretas coisas não são, e não podem ser, a obra de homens, é preciso que elas sejam a obra de alguém; ora, se esse alguém não for um homem, parece-nos que é preciso, de toda necessidade, que esteja fora da humanidade; se não se o vê, é necessário que seja invisível. É um raciocínio tão peremptório e tão fácil de compreender como aquele do senhor de La Falisse. – Quais são então essas inteligências? São as dos anjos ou dos demônios? E como inteligências invisíveis podem agir sobre a matéria visível? — É o que sabem perfeitamente, aqueles que aprofundaram a ciência espírita, ciência que não se aprende mais que as outras num piscar de olhos, e que não podemos resumir em algumas linhas. Aqueles que fazem tal pergunta, colocaremos somente esta: Como vosso pensamento, que é imateríal, faz mover, à vontade, vosso corpo que é material? Pensamos que não devem ficar embaraçados para resolverem este problema, e que, se rejeitam a explicação dada pelo Espiritismo desse fenômeno tão vulgar, é que terão uma outra tão mais lógica a opor-lhe; mas, até o presente, não a conhecemos. Vejamos os fatos que motivaram estas observações.

 Vários jornais, e entre outros o Opinion Nationale, de 14 de fevereiro último, e o Journal de Rouende 12 do mesmo mês, narram o fato seguinte, segundo a Vigie de Dieppe. Eis o artigo ao Journal de Rouen:

“A Vigie de Dieppe contém a carta seguinte, que lhe endereçou seu correspondente de Grandes-Ventes. Já assinalamos, no nosso número de sexta-feira, uma parte dos fatos relatados hoje neste jornal; mas a emoção, excitada na comunidade por esses acontecimentos extraordinários, nos levou a dar os novos detalhes contidos nesta correspondência.

“Não riremos hoje de histórias, mais ou menos fantásticas, dos bons e velhos tempos, e de nossos dias. Os pretensos feiticeiros não estão precisamente em muito grande veneração.

Não se crê mais nos Grandes-Ventes que alhures; mais, entretanto, nossos velhos preconceitos populares têm, ainda, alguns adeptos entre os bons camponeses, e a cena verdadeiramente extraordinária, que acabamos por testemunhar, é bem adequada para fortificar sua crença supersticiosa.

“Ontem de manhã, o senhor Goubert, um dos padeiros de nossa vila, seu pai, que lhe serve de obreiro, e um jovem aprendiz de dezesseis a dezessete anos, iam começar seu trabalho normal, quando perceberam que vários objetos deixavam espontaneamente o lugar que lhes estava designado para se lançarem no batedor de massas. Foi assim que tiveram que separar, sucessivamente, a farinha que trabalhavam de vários pedaços de carvão, de dois pesos de diferentes volumes, de um cachimbo e de uma vela. Apesar de sua extrema surpresa, continuaram sua tarefa, e tinham chegado a enrolar o pão quando, de repente, um pedaço de pá de dois quilos, escapando das mãos do jovem padeiro, lançou-se a uma distância de vários metros. Isso foi ali o prelúdio e como o sinal da mais estranha desordem.

Eram, então, em torno de nove horas e, até o meio dia, foi positivamente impossível permanecer no forno e na adega contígua. Tudo foi transtornado, tombado e quebrado; o pão, lançado no meio da sala de trabalho, com os tabuleiros que os sustentavam, entre os detritos de toda sorte, foi completamente perdido; mais de trinta garrafas cheias de vinho se quebraram sucessivamente, e, enquanto o molinete da cisterna virava sozinho com uma velocidade extrema; os braseiros, as pás, os cavaletes e os pesos saltavam no ar e executavam evoluções do mais diabólico efeito.

“Pelo meio dia, o alarido cessou pouco a pouco, e algumas horas depois, quando tudo entrou em ordem e os utensílios foram recolocados, o chefe da casa pôde retomar seus trabalhos habituais.

“Este bizarro acontecimento causou ao senhor Goubert uma perda de pelo menos 100 francos.”

A este mesmo relato, o Opinion nationale acrescentou as reflexões seguintes:

“Seria injustiçar nossos leitores, reproduzindo esta peça singular, sem convidá-los a se pôr em guarda contra os fatos sobrenaturais que ela relata. Eis, sabemos perfeitamente, uma história que não é de nossa época, e que poderá escandalizar mais que um dos sábios leitores da Vigie; mas, por inverossímil que pareça, ela não é menos verdadeira, e cem pessoas poderiam, se necessário, certificar-lhe a exatidão.”

Confessamos não compreender muito as reflexões do jornalista que parece contradizer-se; de um lado, ele disse aos seus leitores pata se porem em guarda contra os fatos sobrenaturais que esta cana relata, e termina dizendo que “por inverossímil que pareça essa história, ela não é menos verdadeira, e que cem pessoas poderiam, se necessário, certificá-la.” De duas coisas uma, ou ela é verdadeira, ou ela é falsa; se ela for falsa, tudo está dito; mas se for verdadeira, como atesta o Opinion nationale, o fato revela uma coisa bastante grave para merecer ser tratada com um pouco menos de leviandade.

Coloquemos de lado a questão dos Espíritos, e não vejamos nisso senão um fenômeno físico; ele não é bastante extraordinário para merecer a atenção de observadores sérios?

Que os sábios se ponham, pois, à obra e, folheando nos arquivos da ciência, deles nos dêem uma explicação racional, irrefutável, explicando todas as circunstâncias. Se não o podem, é necessário convir que não conhecem todos os segredos da Natureza; e se somente a ciência espírita dá esta solução, é preciso optar entre a teoria que explica e a que não explica nada.

Quando os fatos desta natureza são relatadas, nosso primeiro cuidado, antes mesmo de nos indagarmos sobre a sua realidade, é examinar se são ou não possíveis, segundo o que conhecemos da teoria das manifestações espíritas. Citamos alguns deles, dos quais demonstramos a impossibilidade absoluta, notadamente a história que relatamos no nosso número de fevereiro de 1859, segundo o Journal dês Débats, sob o título de Meu amigo Hermann, e à qual certos pontos da doutrina espírita poderiam dar uma aparência de probabilidade. Sob este ponto de vista, os fenômenos que se passaram na casa do padeiro, perto do Dieppe, nada têm de mais extraordinários que muitos outros que foram perfeitamente averiguados e dos quais a ciência espírita dá a solução completa. Portanto, aos nossos olhos, se o fato não for verdadeiro, ele é possível. Pedimos a um dos nossos correspondentes de Dieppe, em quem temos toda a confiança, consentir em indagar da realidade. Eis o que nos respondeu:

“Posso hoje dar-vos todas as informações que desejais, tendo me informado em boa fonte. A narração feita na Vigie é a exata verdade; inútil relatar-lhe todos os fatos. Parece que vários homens de ciência vieram de muito longe para tomarem conhecimento destes fatos extraordinários, que não poderão explicar se não têm nenhuma noção da ciência espírita.

Quanto às pessoas de nossos campos, estão desorientadas; uns dizem: São feiticeiros; os outros: é porque o cemitério mudou de lugar e se construiu em cima; e os mais malignos, aqueles que passam entre os seus por tudo conhecerem, sobretudo se foram militares, acabam por dizer: Minha fé! Não sei como isso pode acontecer, inútil vos dizer que não falta, em tudo isso, uma larga parte ao diabo. Para fazer compreender as pessoas do povo, todos esses fenômenos, seria necessário empreender iniciá-los na ciência espírita verdadeira; seria o único meio de destruir, entre eles, a crença nos feiticeiros e todas as idéias supersticiosas que por muito tempo ainda, serão os maiores obstáculos à sua moralização.”

Terminaremos por uma última nota.

Ouvimos pessoas dizerem que não queriam se ocupar de Espiritismo com medo de atraírem os Espíritos, e de provocarem manifestações do gênero daquelas que acabamos de relatar.

Não conhecemos o padeiro Goubert, mas cremos poder afirmar que nem ele, nem seu filho, nem seu ajudante jamais se ocuparam com os Espíritos. Há mesmo a se notar que as manifestações espontâneas se produzem, de preferência, entre as pessoas que não têm nenhuma idéia do Espiritismo, prova evidente de que os Espíritos vêm sem serem chamados; dizemos mais, é que o conhecimento esclarecido desta ciência é o melhor meio de se preservar dos Espíritos inoportunos, porque ela indica a única maneira racional de afastá-los.

Nosso correspondente está perfeitamente na verdade, dizendo que o Espiritismo é um remédio contra a superstição. Com efeito, não é uma idéia supersticiosa crer que esses fenômenos estranhos se devem à mudança do cemitério? A superstição não consiste na crença de um fato, quando o fato é confirmado; mas na causa irracional atribuída a este fato.

Ela está sobretudo na crença em pretensos meios de adivinhação, em efeitos de certas práticas, na virtude dos talismãs, nos dias e horas cabalísticos, etc., todas as coisas das quais o Espiritismo demonstra o absurdo e o ridículo.

spot_img