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Para o espiritismo não existe carma nem causa e efeito

Autor: Paulo Henrique de Figueiredo

A moral do espiritismo, bem compreendida, é uma alternativa de vanguarda às opções oferecidas pela sociedade, seja pelo materialismo ou pelas religiões tradicionais.

Ao materialista, basta a justiça. O lema é não fazer aos outro aquilo que não queira que se faça a si mesmo. Mas pense bem, essa regra é apenas restritiva, evita o mal, mas não causa mudanças. As injustiças, desigualdades e privações existentes na sociedade permanecem continuamente, mesmo que todos respeitem a regra da justiça! O único recurso para evitar o mal é a punição. Seguindo essa cartilha, nos jornais televisivos, os braços se agitam, olhos esbugalhados e berros anunciam a solução para a violência e desigualdade sociais: penas mais severas, rigor nas punições. Só assim vamos viver em paz. Será?

Ao crente religioso, o lema é outro, a maior virtude é obediência. Devemos nos submeter aos sofrimentos, privações e dores da vida, pois se é assim é porque Deus o quis. E com ele não se discute. Nos textos do catecismo católico vamos encontrar as seguintes palavras:

“Dizem as sagradas escrituras: ‘O justo vive pela fé’. Fé é a atitude daquele que crê e obedece ao Senhor. A fé é um ato de submissão que implica obediência à sua perfeita Vontade. Mesmo não querendo, o crente dedica-se à oração. Mesmo com a tentação de algo mais interessante, lê as sagradas escrituras. Mesmo sendo egoísta, dedica serviço ao próximo. Mesmo não querendo, pratica a penitência. Mesmo não estando disposto, vai à missa. São sinais de obediência, selo da verdadeira fé”.

Mas essa milenar receita criada para manter as massas submissas às suas condições miseráveis, aceitando a exploração dos sacerdotes e nobre, despertou a incredulidade e a revolta na grande revolução da França. Pensadores como o conde de Volney, tinham convicção de que os jovens e crianças deveriam seguir uma nova moral. Radicalmente diferente da ladainha igrejeira do mundo velho. Num de seus esforços, escreveu um Catecismo do Cidadão Francês. Novos tempos, novas regras. Entre as perguntas e respostas de seu texto elaborado como um longo diálogo, Volney considera:

A lei natural considera como virtudes a esperança e a fé que se unem à caridade?

E então surpreendentemente responde:

Não; porque essas ideias são irreais; e se algum efeito resulta delas, é em vantagem daqueles que não possuem essas ideias em relação com aqueles que as têm; de tal modo que se pode definir fé e esperança como virtudes dos inocentes a benefício dos canalhas.

Ou seja, para quem estuda profundamente a história, como o conde que percorreu as ruínas da antiguidade, fé e esperança são instrumentos de dominação dos poderosos sobre os inocentes, simples e ignorantes.

Mas, então, sem fé, sem esperança, como construir um mundo novo, desafio da revolução? Ou, como se dizia, por quais meios vamos “regenerar a humanidade”? Para os revolucionários franceses e os materialistas que os sucederiam em gerações até a contemporaneidade, a inspiração vem da obra de Helvétius, que, segundo Domenech, foi o “primeiro que fundou a moral sobre a base inabalável do interesse pessoal” (l’Éthique des lumières). Para Helvétius a liberdade não passa de uma ilusão, pois somos todos submissos aos nossos interesses, e não há mal algum nisso, somente naturalidade biológica. E então, entona sua máxima moral:

“em matéria de moral como em matéria de espírito, é o interesse pessoal que dita o juízo dos indivíduos e o interesse geral que dita o das nações” (Helvétius, Do Homem).

Em resumo, para as religiões milenares devemos ser submissos a Deus. E para o materialista somos naturalmente submissos aos interesses. O ser humano, então, se ressume a isso: submissão?

É aqui que o espiritismo vai inovar, colocando-se na vanguarda do mundo novo.

Não a doutrina mal compreendida, pois não há no ensino dos espíritos superiores a ideia de pecado, seja o católico, ou o oriental, conhecido como carma.

Carma ou pecado é a ideia de que Deus estabeleceu regras que devem ser obedecidas pelos indivíduos, caso contrário serão castigados. E se forem obedientes, serão recompensados.

Esse mecanismo é exatamente o do condicionamento. Por ele, os animais fazem exatamente o que os adestradores mandam. Repetindo as situações, e dando um petisco, o bicho vai fazendo aquilo que se manda. A punição nem é necessária, somente para descondicionar hábitos equivocados extremos. Chega uma hora que, mesmo sem petisco, ele vai obedecer direitinho. Esse é o infalível mecanismo.

Seres humanos também podem ser condicionados. Pela moda, pelos programas de televisão, repressão policial, livros. Seja bonzinho e aceite a recompensa. Depois vem o hábito, e nem precisa mais de recompensa, pois já estão todos condicionados, obedecendo direitinho. Aos rebeldes, estará reservada a punição.

Mas o espiritismo revela uma lei natural muito diferente. Nós temos um corpo animal, essa é a causa da possibilidade de condicionamento dos seres humanos. Outra causa está no fato de que vivemos num mundo ainda muito primitivo, onde a maioria dos espíritos que aqui encarnam estão vivendo suas primeiras centenas de vidas humanas.

Mas verdadeiramente somos espíritos, e por isso temos vontade, razão e sentimento. Desde as primeiras vidas humanas, desenvolvemos paulatinamente o livre-arbítrio. Sim, a liberdade. Essa é a lei do espírito. Deus não pune nem recompensa os espíritos, mas criou leis tais que regem o universo, de tal modo que as escolhas carregam em si mesmas as consequências boas ou ruins. Afirmam os espíritos:

A alma ou Espírito sofre na vida espiritual as consequências de todas as imperfeições que não conseguiu corrigir na vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao seu grau de pureza ou impureza. (O céu e o inferno).

Deus não impõe o sofrimento com castigo quando alguém erra. Não existe esse mecanismo. Da mesma forma que Deus não empurra uma maça para baixo para fazer valer sua lei da gravidade. Veja só o que os espíritos explicam:

Sendo a felicidade dos Espíritos inerente às suas qualidades, haurem-na eles em toda parte em que se encontram, sela à superfície da Terra, no meio dos encarnados, ou no Espaço.

Ou seja, a felicidade não está num lugar no qual o espírito possa ser colocado para usufruir um bem-estar. Esse sentimento não vem da satisfação das necessidades, como pensava Helvétius, nem de merecer viver as beatitudes de um céu imaginário, como prometem os sacerdotes, mas de uma condição conquistada pelo esforço voluntário de cada um, ou suas qualidades. Felicidade é o sentimento daquele que progride. Fazendo uso da música, os espíritos em O céu e o inferno oferecem uma interessante comparação:

Se se encontrarem em um concerto dois homens, um, bom músico, de ouvido educado, e outro, desconhecedor da música, de sentido auditivo pouco delicado, o primeiro experimentará sensação de felicidade, enquanto o segundo permanecerá insensível, porque um compreende e percebe o que nenhuma impressão produz no outro. Assim sucede quanto a todos os gozos dos Espíritos, que estão na razão da sua sensibilidade. O mundo espiritual tem esplendores por toda parte, harmonias e sensações que os Espíritos inferiores, submetidos à influência da matéria, não entreveem se quer, e que somente são acessíveis aos Espíritos purificados.

Mas e o castigo, não é necessário como reação ao erro?

Segundo as tradições orientais, a cada erro cometido terá como consequência um castigo. Um sofrimento desta vida, se não tem causa aparente, estará certamente na vida anterior. É a lei do carma, ou causa e efeito, ou ação e reação. Mas não é esse o ensinamento inovador dos espíritos superiores. Do mesmo modo que a felicidade é inerente às qualidades, eles ensinam que:

O sofrimento é inerente à imperfeição.

Ou seja:

Sendo o sofrimento inerente à imperfeição, tanto mais tempo se sofre quanto mais imperfeito se for, da mesma forma por que tanto mais tempo persistirá uma enfermidade quanto maior a demora em tratá-la. Assim é que, enquanto o homem for orgulhoso, sofrerá as consequências do orgulho; enquanto egoísta, as do egoísmo.

Qual a relação entre uma vida e outra, então? Agora é preciso prestar atenção pois a diferença é sutil. O carma propõe uma relação de causa e efeito. Ou seja, o erro terá como efeito o sofrimento. Os espíritos, por sua vez, estão ensinando que se trata de uma relação de “inerência” entre a imperfeição e o sofrimento. O indivíduo sofre nesta vida em virtude da imperfeição presente, aquela da qual ainda não se libertou, e não por causas passadas. Afirmam os espíritos:

Aquele, pois, que sofre nesta vida pode dizer-se que é porque não se purificou suficientemente em sua existência anterior, devendo, se o não fizer nesta, sofrer ainda na seguinte. Isto é ao mesmo tempo equitativo e lógico.

Está bem claro, não se sofre nesta vida tendo com causa o erro da vida passada. Quem sofre nessa vida, é em virtude da imperfeição que ainda tem, desde as outras passadas. Em verdade desde que desenvolveu os hábitos que caracterizam sua imperfeição. Porque todos fomos criados simples e ignorantes. Alguns desenvolvem imperfeições e vão precisar superá-las, outros conquistam qualidades sem precisar passar por aquela condição. A ignorância é o ponto de partida de todos, a virtude será igualmente o destino de todos, a imperfeição é a escolha de alguns. Muitos evoluem sem precisar enfrentar as expiações, explicam os espíritos superiores em O evangelho segundo o espiritismo:

Entretanto, nem todos os Espíritos que encarnam na Terra vão para aí em expiação. As raças a que chamais selvagens são formadas de Espíritos que apenas saíram da infância e que na Terra se acham, por assim dizer, em curso de educação, para se desenvolverem pelo contato com Espíritos mais adiantados. Os Espíritos em expiação, se podemos exprimir dessa forma, são exóticos, na Terra; já tiveram noutros mundos, donde foram excluídos em consequência da sua obstinação no mal e por se haverem constituído, em tais mundos, causa de perturbação para os bons. Tiveram de ser degradados, por algum tempo, para o meio de Espíritos mais atrasados, com a missão de fazer que estes últimos avançassem, pois que levam consigo inteligências desenvolvidas e o gérmen dos conhecimentos que adquiriram. Daí vem que os Espíritos em punição se encontram no seio das raças mais inteligentes.

Deus não lida conosco por meio de castigos e recompensas, como o faz um treinador de animais. Ele nos reconhece em nossa natureza espiritual, a mais ampla liberdade. Criou leis naturais que oferecem consequências naturais às nossas escolhas. A dor da queda não é um castigo imposto pela lei da gravidade, mas consequência natural do peso, da fisiologia, da aceleração da gravidade, tudo previsível e natural.

Compreender as consequências naturais de nossos atos, escolhendo o melhor modo de agir em cada situação, de acordo com as nossas possibilidades é que podemos denominar virtude. Buscar o melhor para todos, agindo livremente de acordo com a consciência, usando o esforço da razão é o ato do dever. Não buscamos em Deus o livramento das nossas dificuldades, mas a força necessária para superá-las. O espírita não espera de Deus recompensa. E isso é novidade apenas na interpretação correta da palavra de Jesus, pois, há dois mil anos, ele já ensinava:

“E sereis ditosos por não terem eles meios de vo-lo retribuir” (Lucas, 14:12-15).

Livros do autor: https://mundomaior.com.br/paulo-henrique-de-figueiredo/

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