Que tal fazer de O livro dos espíritos o livro dos espíritas?

Autor: Rogério Miguez

Há 168 anos, a Livraria E. Dentu, Galeria de Orléans, n. 13, Palais Royal em Paris, presenciou o nascimento de uma nova e extraordinária luz para a Humanidade. Esta surpreendente claridade se deu por meio da publicação de um livro, até então sem paralelo no universo da literatura, intitulado O livro dos espíritos. Era 18 de abril de 1857, mais um sábado na primavera francesa, quando seu autor – Allan Kardec – se apresentou ao mundo, mais uma vez, e ofereceu sua primeiríssima obra de cunho espiritualista – particularmente espírita -, a primeira de uma sequência de cinco obras fundamentais que formariam o arcabouço da recém-criada Doutrina dos Espíritos.

Dissemos que o autor se apresentou mais uma vez, pois este Espírito já havia vivido entre os gauleses na Antiguidade com o nome de Allan Kardec, vindo daí a sugestão da Espiritualidade Superior que ele retomasse o antigo nome para se desvincular do seu atual nome francês de batismo, evitando, desta forma, mal-entendidos entre aqueles que já o conheciam como um pedagogo de renome nacional.

Inicialmente, o lançamento da obra não acusou um sucesso retumbante no meio literário, pois era tudo novidade e seu autor era mais conhecido por Hippolyte Léon Denizard Rivail, um professor consagrado, mas como adepto do espiritualismo ainda desconhecido da grande maioria. É fato que conheceu e praticou as leis do magnetismo animal, por algumas décadas, mas este contato com esta dádiva de Deus não o tornou mais conhecido do que já era.

O pouco tempo em que esteve envolvido com os fenômenos espiritualistas – de 1855 até o início de 1857 – com o objetivo de entender os inusitados fenômenos das mesas girantes, comuns àquela época, terminando por redigir esta obra, não o tornou conhecido, de imediato, fora do âmbito da pedagogia tradicional, área de atuação em que também brilhou com a produção de obras educacionais usadas pelo sistema francês de educação escolar.

Entretanto, gradativamente, o brilho daquela luz foi se expandindo e chamando a atenção dos parisienses e, um pouco mais à frente, do mundo inteiro, a ponto de Allan Kardec afirmar que em breve o Espiritismo estaria presente em âmbito mundial, pois na França já estaria praticamente consolidado.

Contudo, como sabemos, esta expectativa deste filho de Lyon não se concretizou, pois após a sua morte o Movimento Espírita, gradualmente, foi se distanciando da pureza original, mesmo que estivessem agora à frente de sua divulgação seus seguidores mais próximos. Infelizmente, eles não souberam manter a Doutrina nos seus trilhos iniciais, permitindo que aqui e ali se infiltrassem práticas e literaturas que não correspondiam aos ideais originais.

O resultado não se fez esperar: em curto espaço de tempo o Movimento se perdeu sob influências nefastas, permitidas e aceitas por aqueles que tomaram as rédeas da divulgação espírita, mas não souberam honrar os princípios doutrinários que, em última instância, explicam como funcionam as Leis de Deus. O cuidado do autor em bem consolidar os pilares do Espiritismo foram deixados de lado e não houve outro remédio, por parte da Espiritualidade Superior, senão providenciar a migração da divulgação do Espiritismo para outra região do planeta.

O país escolhido se situava agora abaixo da linha do Equador, particularmente, a grande e promissora nação brasileira.

E assim se deu. O primeiro Centro Espírita foi fundado em Salvador, Bahia, por Luís Olímpio Teles de Menezes. Em 1873 fundou-se o Grupo Espírita Confúcio no Rio de Janeiro. Entretanto, os primeiros exemplares do Espiritismo aportaram em terras brasileiras no idioma nativo do autor, o francês, e coube a Joaquim Carlos Travassos traduzir O livro dos espíritos para o português em 1875. Até então, apenas aqueles que dominavam a língua do povo que se originou dos antigos gauleses, podiam apreciar os inolvidáveis ensinos contidos naquela filosofia espiritualista vinda d’ além-mar.

A partir de então, o povo pôde ler a primeiríssima obra de Allan Kardec e o Movimento tomou impulso vertiginoso, espalhando-se nos quatros cantos do país, permitindo que as massas também pudessem conversar com as almas do outro mundo, como Allan Kardec e os europeus de então fizeram à vontade, recebendo orientações e mensagens dos chamados mortos sobre todos os assuntos de interesse.

Embora tudo estivesse caminhando bem, ainda surgiram dedicados e fiéis médiuns como Zilda Gama, o mineiro Chico Xavier, mais à frente na Bahia, Divaldo Franco e, em seguida, José Raul Teixeira no Rio de Janeiro, entre tantos outros. Entretanto, os novos e alguns antigos adeptos do Espiritismo – talvez seja da natureza humana, característica de Espíritos ainda inferiores  –,  começaram mais uma vez um lento processo de adaptação da teoria espírita original aos seus particulares costumes e inclinações, aos modelos aprendidos e vivenciados em antigas participações de outras vertentes religiosas, nesta ou em outras vidas, introduzindo práticas e conceitos que não se alinhavam com os pilares doutrinários.

Uma das muitas razões para tanto, se deve ao costume de não se ler, muito menos estudar as obras básicas, particularmente a primeira, a pedra angular, ou seja, O livro dos espíritos.

É impressionante o surgimento na atualidade de uma quantidade imensa de propostas e ensinos divulgados distantes da realidade espírita, sem que muitos percebam que o que defendem, em muitas situações, não se encaixa na estrutura doutrinária espírita, mas, deixam de lado este aspecto, pois, afinal, o que apenas desejam é se sentirem satisfeitos com a forma que idealizam o Espiritismo, mas não com aquela que de fato o representa.

Esta preocupante situação se reflete na literatura produzida em nome do Espiritismo, que invade o ambiente espírita com propostas estranhas, com o poder de, aos poucos, modificar a forma de se entender e viver esta maravilhosa Doutrina; um ambiente que faz lembrar ou revive os anos posteriores à desencarnação de Allan Kardec, quando, por exemplo, a Teosofia de Helena Petrovna Blavatsky era divulgada abertamente na Revista Espírita, para desespero dos reais seguidores do Espiritismo, leitores deste importante periódico também criado por Allan Kardec em 1858.

Talvez estes antigos adeptos tenham voltado, agora encarnados nas terras brasileiras, com a missão de refazer seus destoantes passos doutrinários, embora alguns deles, novamente, estejam se deixando levar pelo conhecido canto da sereia, que os encantou no passado, ou seja, abraçando as propostas dos inimigos de Deus, de Jesus e, portanto, do Espiritismo, na figura dos obsessores que pululam na atmosfera terrena.

Será que o cenário da Europa do século XIX, pós Kardec, está se tornando realidade novamente?

O disparate chega a tal ponto que existe proposta de que todo livro, em cuja contracapa conste a afirmação de que se trata de obra espírita, seja considerado, só por isso, como espírita, bastando esta simples menção para comercializar, estudar e divulgar o livro por todos os meios, inclusive estimulando a formação de grupos de estudo destas literaturas, logo alçadas a representantes das novíssimas revelações doutrinárias.

Espera-se que haja uma reversão urgente destas condutas sob pena de assistirmos repetir-se o que aconteceu na Europa quando do surgimento do Espiritismo, só que agora em outra nação, o Brasil, impedindo, pelo menos provisoriamente, que haja a definitiva implantação da Doutrina neste planeta-escola, a Terra.

Para tanto, uma providência simples que poderia ser implementada, imediatamente, seria o retorno sistemático ao estudo das obras fundamentais em todas as instituições espíritas, como se fazia no passado, pois, naquela época, afora as obras básicas, havia poucos títulos de livros verdadeiramente espíritas, não havendo motivo algum para se dar valor a outras literaturas e modismos pseudodoutrinários, pela simples razão de que não existiam…

As obras básicas deveriam receber prioridade quando se fala em novas programações de estudos. Há muitos novos interessados em aprender o que diz o Espiritismo, do que se trata, quais são os seus fundamentos, e a porta de entrada para estes novatos poderia e deveria ser o estudo de O livro dos espíritos.

Para se ter uma ideia da importância deste livro, o médium Divaldo Franco já relatou que, quando de seus primeiros contatos com a Espiritualidade Superior, na figura de Viana de Carvalho, advertindo-o sobre a sua missão, lhe foi sugerido que lesse O livro dos espíritos por três vezes consecutivas. Após a terceira advertência, o médium baiano não deixou de estudar esta obra ao longo de toda a sua existência, assim fazendo até os dias de hoje.1,2

Além dele, Raul Teixeira também recebeu, ao iniciar sua valorosa missão na difusão do Espiritismo, a mesma orientação dos Benfeitores do espaço. E o médium fluminense, a partir de então, não deixou de estudar esta obra, refazendo seus estudos sobre este extraordinário livro todos os anos. À época em que revelou esta prática, já o havia estudado por 42 anos seguidos, além de ter o costume de realizar consultas diárias quando necessário.3

E, para aqueles que imaginam que seja uma tarefa muito difícil de cumprir, entre tantas atividades que possuímos, basta lembrar que Yvonne Pereira lia todas as obras fundamentais, todos os anos, durante a sua última reencarnação.4 E para nos convencermos da factibilidade de também reviver este salutar costume da médium fluminense, observemos que há aproximadamente duas mil páginas de escritos de Allan Kardec no pentateuco espírita, ou seja, em média quatrocentas páginas por livro. Se dividirmos este número por 365 dias, o resultado não chega a seis páginas de leitura por dia. Ah! se assim agíssemos! Infelizmente, quanto tempo perdido na frenética utilização dos telefones celulares, enviando e lendo mensagens e imagens, de modo geral absolutamente desnecessárias, divulgando fake News, entre tantos outros usos inadequados desta dádiva da tecnologia! Se não nos falta tempo, por qual razão não nos dispomos a ler seis páginas destas cinco obras básicas por dia, ao longo de um ano!?

Desta forma, quem sabe, em breve tempo, O livro dos espíritos poderá ser novamente considerado, como foi no passado, O livro dos espíritas.

Referências

1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uOloypdKjyA Acesso em: 23 de nov. 2024.

2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RFsO53fcFU8 Acesso em: 23 de nov. 2024.

3 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Vt2tKsf8vBE Acesso em: 23 de nov. 2024.

4 Reformador, jul. 2002, p. 16(206). Ano 120. nº 2080. Kardec estudado em apenas um ano.  Affonso Soares.

DICA

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