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A lenda de Kandata

Autor: José Antônio Vieira de Paula

Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre a multidão de pecados 

Pedro 4:8

Essa interessante afirmação do apóstolo Pedro sempre nos levará a profundas reflexões em torno da justiça e da misericórdia divina.

Selecionamos para este mês uma lenda hindu registrada pelo admirável escritor e matemático carioca Júlio César de Mello e Souza, mais conhecido pelo seu pseudônimo Malba Tahan, que trata do assunto no seu livro “Lendas do Deserto” (estória também encontrada na coletânea: “Melhores Contos”, de Malba Tahan).

Conheçamos a lenda:

Kandata, o facínora, tendo expirado sem mostras de arrependimento, foi pela imutável Justiça atirada à região sombria dos eternos suplícios. Durante muitos séculos, suportou indiferentemente os tormentos do inferno. Um dia, porém, seu coração empedernido foi tocado por tênue raio de luz do arrependimento. Ajoelhou-se e implorou, em prece fervorosa, a proteção e misericórdia do Senhor da Compaixão.

No mesmo instante surgiu-lhe a figura radiosa de um anjo, que lhe disse:

– O Senhor da Compaixão ouviu a prece humilde que acabas de proferir. E aqui estou para salvar-te dos castigos tenebrosos do inferno. Ó Kandata, no decorrer das tuas vidas anteriores, houve dia em que tivesses assistido a uma boa ação tua, por menor que  fosse? Ela te ajudaria, agora, livrando-te dos tormentos que, sem tréguas, te afligirão. Mas nunca esperes ver cessados os sofrimentos atuais, consequência do teu passado, se conservares ainda sentimentos de egoísmo e se tua alma guardar a impureza da vaidade, da luxúria e da inveja! Diz-me, ó Kandata, se queres sair daqui, qual foi, por acaso, o ato de bondade que em vida praticaste.

– Pelo Deus da Misericórdia! – exclamou Kandata, cheio de profunda humildade e tristeza. – Jamais pratiquei, em minha vida passada, qualquer ato digno ou louvável. A minha existência foi um rosário interminável de crimes e infâmias de toda espécie!

– Kandata! – insistiu o anjo. – Procura rememorar miudamente todas as ações do teu negro passado! Basta um ato verdadeiramente bom de tua parte, um só, para que obtenhas o perdão de Deus! Alguma vez socorreste, com a esmola, o desprotegido da sorte?

– Nunca – murmurou Kandata, com voz sucumbida.

– Algum dia – prosseguiu o anjo – tiveste uma palavra de consolo ou de bondade para os aflitos e desesperados?

– Nunca!

– Não te moveram, uma vez, à piedade, os enfermos, nem dispensastes alguma proteção aos fracos e infelizes?

– Nunca! – soluçava Kandata, com o desespero dos arrependidos.

– E para com os animais, nossos irmãos inferiores? – insistiu o anjo. – Trataste com crueza, impiedosamente, todos os seres fracos do mundo?

– Deus seja louvado! – exclamou Kandata. – Lembro-me de que, certa vez, ao atravessar um bosque, vi uma pequenina aranha que procurava esconder-se sob a relva. “Não pisarei nesta pobre aranha”, pensei, “porque é fraca e inofensiva”. Desviei o passo, a fim de poupar a vida ao mísero animalzinho. Teria sido esta uma ação agradável aos olhos do Criador?

– Feliz que és, Kandata – respondeu o anjo. – Esse pequeno ato de bondade que acabas de recordar é, sem dúvida, suficiente para salvar-te do inferno; e é a própria aranha do bosque que, em breve, te proporcionará – pela vontade divina – o meio único de salvação. Da altura infinita do céu a aranhazinha vai lançar-te um fio; por ele poderás subir até ao seio do Onipotente!

E, isto dizendo, o anjo desapareceu. Quase no mesmo instante, viu Kandata, com grande assombro, que um fio de aranha descia das alturas divinas até o fundo do abismo negro que o torturava. Aquele fio, de enganadora fraqueza, representava para ele a salvação, a tão sonhada ventura! Estaria, para sempre, livre dos suplícios indizíveis do inferno!

Sem hesitar, Kandata agarrou-se a ele e começou a subir. Sentiu, desde logo, que o fio – pela bondade do Onipotente – era forte e lhe sustentava perfeitamente o peso do corpo, que balouçava no espaço. De repente, porém, em meio da escalada, lembrou-se o bandido de olhar para baixo e notou que os seu companheiros de infortúnio procuravam, também, à porfia, salvar-se da região dos tormentos, subindo pelo mesmo fio.

Com certeza, não poderá tão delgado sustentáculo suportar o peso dessa gente toda! – Pensou Kandata apavorado. E, instigado pelo terrível egoísmo, desejando apenas a própria liberdade – sem lhe importar a alheia desgraça –, gritou para os infelizes que já se agarravam, penca infernal, ao fio salvador:

– Larguem, miseráveis! Larguem, que este fio é meu, só meu!

No mesmo instante, partia-se o fio da aranha e Kandata era para sempre restituído às profundezas em que tanto tempo sofrera tão duros castigos! O fio salvador, forte bastante para levar ao céu milhares de criaturas arrependidas de seus crimes, rompera-se ao sofrer o peso do egoísmo que a maldade insinuara num coração.

O consolador – Ano 6 – N 304

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